Décimo oitavo dia - o botelho

dia-a-dia: o Paulo e o Hugo e uma parede avançada

Levei o picheleiro à obra para marcar a localização dos tubos de esgoto para sanitas e afins. Eu abria as plantas, media entre as paredes e riscávamos o chão com giz. A certa altura ou ele ou eu reparámos que as nuvens que nos encimavam eram mesmo de chuva e pouco faltava para que a água levasse o giz. Cravámos tinta ao Luís (como sempre, homem santo) e pintámos sobre o giz. Umas horas passadas, depois duma chuvada de levantar as pedras da calçada, as marcas de tinta ainda lá estavam. Para a semana comprovo se ele percebeu o que lhe disse.

Entre uma coisa e outra passei por Freixo. A Maf e a Alice estavam a fazer uma reportagem sobre o ciclo da seda. Sobre como de uma caixa em que algumas borboletas fodiam e outras morriam e outras punham ovos e destes nasciam lagartas que comiam folhas de amoreira para ganhar coragem para fazer casulos na arçã para depois se matar o bicho e fazer seda do casulo. Tanta trabalheira para uma ou duas écharpes de resultado. Bah. As amoreiras, no entanto, são muito bonitas. Talvez as use para substituir os olmos que estão a morrer, pobres coitados.

uma amoreira, em Freixo

Ao voltar a Martim Tirado fui mostrar as cabrinhas do Zé Manel às meninas. Como já têm tamanho que chegue para comer e tamanho de mais para mamar (o que dá menos queijos para vender), o Zé Manel põe-lhes um botelho na boca, preso aos chifres, para que deixem de mamar para comer como os adultos. O que acontece por vezes é que são as próprias mães a ajudarem-nos a soltar-se do botelho, como aconteceu a uma cabrita que lá estava.

a mãe diz à filha, vai lá pra dentro lavar os dentes (foto da Maf)

Décimo sétimo dia - a primeira visita

dia-a-dia: está a ganhar cor a coisa

Convidei o Quim, o meu anfitrião na Macieirinha, para vir ver a casa. Ficou espantado com a parede de pedra, até eu fiquei, um primeiro pedaço de parede à minha medida, depois da desilusão da semana anterior. Fruto de eu ser um chato com os homens e da arte do Paulo, que vai procurando as pedras compridas e tenta estreitá-las com o martelo. Não é fácil Nuno, então tu não vês que para ter uma pedra de trinta e cinco centímetros é preciso partir e isto racha tudo? Já estás a ver o trabalho que dá, ó Nuno. Mas compensa. Menos pedras lisas, mais falheiras, mais pedras compridas.


uma parede a sério

Décimo sexto dia - cerejas a maturar

dia-a-dia: rabo não identificado

Dia sem assunto. O picheleiro ainda não respondeu, os pedreiros avançam, devagar. A mancha de parede feita na última semana tem menos pedras perfeitas e mais falheiras, mas ficaram a faltar as pedras compridas. Relembrei-o ao Paulo, que lá foi partindo algumas à minha vista para mostrar o quão difícil é parti-las para uma parede de apenas 35 centímetros. Prometeu-me que iam pôr mais. Disse-lhes que podiam usar a pedra do muro, que é para vir abaixo de qualquer maneira. Eles preferem desmontar primeiro o palheiro onde o meu avô acomodava os burros, já em parte caído.

a parte mais recente não me agrada

Trouxe dois sacos de cerejas, já carnudas e escuras, quase no ponto.

Décimo quinto dia - pedras falheiras

dia-a-dia: o Paulo e o sô António, que é à sombra que se está bem

Chegaram as pedras do Poio, luzentes e prontas a montar. Só com uma máquina, informa o Paulo. Ainda estou surpreendido com o difícil que é trabalhar o xisto e o intricado dos cortes que eles conseguiram fazer (o xisto racha por todos os lados, ao contrário do granito, que dá para 'ir picando'). Espero que ao pedreiro agradem as pedras e o seu encaixe, já que é tão difícil razoar com ele. Hoje, pela primeira vez, tive de lhe fazer peito. Dizia que se não pusesse as pedras facejadas não ficava bonito e as pessoas passavam e desdenhariam o trabalho de pedra. Garanti-lhe que não: ninguém que por cá passar vai deixar de elogiar a parede, agora você tem a sua arte e eu tenho a minha. Não o estou a criticar, senhor António, o seu trabalho está a sair espetacular, mas quero mais pedras falheiras, percebe? Mais tosco, como nas paredes antigas. Acho que não percebeu. No fim, já de cigarro na mão, parecia já dizer que sim, que concordava. Fiquei sem saber.

Falei também com o picheleiro, em Freixo. Eu explicava-lhe a rede de retorno de água quente e ele nem com a cabeça anuía. Abençoada mulher que percebia tudo.

Entrei na arrecadação onde o meu avô fazia o mel pela janela, à cata de ferramentas. Nada. Resgatei uma caixa de plástico da danone, as presilhas para fazer o queijo (uma era de madeira), uma vasilha de leite e um saco de couro da TAP. Nas andanças à procura da chave da arrecadação o Paulo mostrou-me uma andorinha, que aproveitou a porta aberta o dia inteiro para fazer lá dentro o ninho, sobre o contador. E lá andava, perdida, assustada, sem saber o que fazer connosco. E nós com ela.

E chegaram as primeiras cerejas do ano, pelas mãos sabidas do Guilherme. Todos de todas as casas me prometem mais, chegando a altura.

É terrivelmente fácil identificar uma amoreira. É ver onde o asfalto está tintado de roxo.

os olmos do meu avô, já moribundos

eu diria que a pedra não está nada mal

Décimo terceiro e décimo quarto dias - lanceta

dia-a-dia: (paguei ao senhor um café pela espera)

Ontem fui ver das pedras. O Mauro é acessível e competente, e já me arrependi de lhe ter respondido uma vez de jeito mais áspero. Pacientemente e pedra a pedra (com a ajuda dum lápis de cor vermelha e a prestimosa faca-aguça) lá ia explicando aos homens os cortes a fazer e como a ombreira iria assim encaixar na toiça. Como um puzzle, tentei eu. O Mauro anuiu, com um olhar. Os homens também parecem perceber. Ainda não estou certo quanto à pedra, assim como ainda não estou certo de quase nada. Ou vejo ainda muita coisa incerta, não sei bem.

Hoje insisti com os homens o isto e aquilo da parede. Umas dizem que sim, outras dizem que não, outras calam-se. Pedi ao Paulo para vir comigo procurar a chave da arrecadação onde o meu avô fazia o mel (entretanto descobrimos a janela, apenas encostada). Haveria lá ferramentas e possivelmente serras para me ajudar nas podas. Entrando na cozinha da casa do meu avô com a ideia de encontrar uma chave, os olhos curiosos do Paulo deram com o que parecia ser uma chave com estojo de couro, ficando apenas o cabo à vista. Chegámo-nos à luz para ver melhor. A parte escondida pelo couro era uma lâmina, redonda como nunca tinha visto. Inquiri junto dos velhos o que aquilo era e todos concordavam, não sem uma interjeição e um sorriso, que aquilo era uma faca de capar porcas. Porcas? Sim, porcas, então você não sabe o que é uma porca? Depois de elas terem estado prenhas e com os porcos ninhos era preciso capá-las para não andarem a vadiar e a meterem-se com os porcos. O seu avô quando veio de África ainda capou muitos leitões. Uma faca para capar porcas e leitões. Seria lanceta, indagava-se a Alcina sobre o nome da faca. O Amílcar fez questão de me mostrar como se segurava a 'lanceta', com os dedos em V para vasculhar os vazios da porca. Fica a fotografia.

lanceta, arma temível

Matei um tarrote e uma andorinha. Um sardão escapou por isto (gesto característico com os dedos). A natureza tem esta tendência curiosa de se enfiar no espaço entre a roda e o pára-lamas do meu carro.

diabos me levem se isto não é uma parede de pedra