Vigésimo terceiro dia - ganhotos

dia-a-dia: é uma casa trasmontana com certeza

Chega às duas e acaba a capacidade de trabalho. Consegui desfazer um monte de lenha da gingeira e da amendoeira seca (hoje cortei-lhe os ramos - quando comprar a motosserra corto-lhe o tronco) e desisti de trabalhar mais. Ainda tentei um ou outro empreendimento. Em vão. As forças já eram.

as exéquias para o funeral

O dia começou com o típico momento National Geographic (infelizmente, sem David Attenborough). Parei o carro, ainda um pouco ensonado, para deixar passar a família Galaró (uma garbosa perdiz seguida de nove ou dez perdigotos). O caos instalou-se. A perdiz numa berma, a confrontar-me, e os perdigotos, um a um, a desaparecerem num arbusto à esquerda. Também à esquerda, um pouco mais perto do carro, uma cobra saltou. Em pânico, pensei eu na altura. A abocanhar meia dúzia de perdigotos, sei-o agora.

A Fidalga recebeu novo carregamento de comida. A anterior já tinha acabado e não sei quanto tempo esteve ela sem comer. A primeira gamela foi num piscar de olhos. À hora do almoço, como boa cadela que é, fez-me companhia enquanto eu comia.

a minha cadela

Percebi finalmente o que são os ganhotos. Os pedreiros chamam-no a tudo o que não é xisto, normalmente pedras maiores de mais perfeitas, como as de quartzo.

Não sei se é sol de pouca dura mas consegui finalmente uma confirmação mais definitiva dos pedreiros de que tentariam usar as pedras originais na reconstrução da porta. Já antes, por mais de uma vez, me confirmaram que sim, era possível reintroduzir as pedras, que era questão de encontrá-las, etc. Hoje voltaram com outra lenga-lenga: que era muito complicado, que faltavam pedras, que a ombreira não tinha altura, que lhe faltava a esquina para o encaixe da porta, que a soleira era muito larga para o espaço disponível. Fui ver. A soleira era, de facto, muito larga - 2 metros para um vão de 1,4 metros. Recorta-se com a rebarbadeira a parte interior e, senhor António, não ponha essa pedra aí. Essa mesmo. Não a ponha que fica a mais. A esquina para a a porta? Está aqui, esta é uma das ombreiras, está aqui por baixo a esquina. É muito baixa? Colocam-se estas ombreiras sobre a soleira e depois colocam-se pedras extra para acertar com os 2 metros. Sim, nem que se comprem as pedras. E, assim, resolveu-se a questão. Para já.

a soleira original da casa da tia Baldo

Há uns minutos a Fernanda largou a lide para, dizia ela, levar a 'Sagrada Família' à vizinha. Ó vizinha, tenho aqui a santinha! A tradição dita que todos os dias a 'santinha' migre para a casa seguinte, como uma devoção em movimento. A sorte da Fernanda é morar rodeada de casas. A vizinha da última casa tem de levar a 'santinha' até à Portela. O que para uma velhota, durante o verão, não é caminhada fácil.

as malfadadas larechas

Vigésimo segundo dia - 605 forte

dia-a-dia: uma pedra por dia

Passei a manhã e o início da tarde perdido nas burocracias da obra, entre Moncorvo e Freixo.

Voltado às Quintas, e com a roupa da cidade, insisti em arrumações. A madeira empilhada junto ao contentor (vinda da escombreira da casa da tia Baldo) tem de levar destino, e comecei a carregá-las para um telheiro construído pelo meu avô. (Re)descobri, no monte de tábuas indistintas, umas tábuas pintadas e decoradas, e separei-as. Parece renda em forma de madeira.

A seguir desci com a Fernanda e o Zé Manel à horta. Trouxemos batata e cebola. Vê-se logo que a horta é tua. Então porquê? Porque és o único a plantar girassóis no meio da horta, gracejava a Fernanda para o Zé Manel. A alegria com que ela encontrou as batatas vai-me ficar para sempre. Ai que ricas batatas! Para além de batatas, girassol e cebola, têm também grão-de-bico, tomate, morangos, couve e mais de quantas coisas.

recorde do guinness

Voltávamos para cima com o trator cheio de batatas quando me falaram duma amendoeira seca. Pobre coitada, seca no meio de amendoeiras tão verdejantes. Já prometi a mim próprio cortá-la quando chegar a altura das podas. Planto lá uma cerejeira. Fernanda e Zé Manel dizem que sim.

o amor e um trator

Mais à frente, outra visão insólita: dois velhos de volta de uma dourada, sobre um muro molhado. O molhado era de herbicida, que em vão tentavam entranhar na dourada. A dourada, essa, era para aliciar uma raposa, que lhes andava a rapinocar (!) as frangas. Ainda discutiram por uns momentos da pena de não terem 605 forte, que isso é que era.

o cenário do crime

E eu a pensar na pobre da raposa. O Zé Manel, à noite, confidenciou-me que isso da natureza estava muito bem, mas era dos coelhos e perdizes. Agora lobos e raposa é que não, para que é que os andam a largar? Outra vez a ideia dos fiscais dos parques que andam a largar lobos e o que for. Disse-lhe que isso nunca tinha acontecido e percebi que lho havia dito o mesmo antes. Talvez mais do que uma vez.

Vigésimo primeiro dia - Residência Baldo

dia-a-dia: acho que já vi isto antes

Uma das senhoras comentou o eclipse (e que é assustadoramente parecida com a minha avó, apesar da improvável falta de ligação familiar) disse-me que em tempos se referiam à Quinta dos Baldo como a 'Residência Baldo' e à casa dos meus avós como a 'Residência Fidalgo', referência ao nome de família da mãe do meu avô paterno. Adorei o 'Residência', pleno de urbanidade.

A Serra da Estrela tresmalhada, carregada de carraças e ainda mais magra do que da última vez que a vi, é já oficialmente minha. Encarreguei a Clementina de lhe dar a ração e o anticarraças pagos por mim. Falta arranjar-lhe um nome.

bicho sofre

A obra avança. O picheleiro corrigiu a posição da sanita e já se chumbaram os canos. Com medidas milimétricas, marquei no chão com o spray o posicionamento da cofragem do pavimento da casa de banho. A meio da tarde, em horror, percebi que a janela da sala estava um metro para a direita do que eu tinha desenhado. Erro meu, com certeza. A sorte é que das quatro janelas, era a única que ainda não tinha levado pedra por fora.


belos interiores

uma janela ao lado

À noite paguei o jantar aos pedreiros, uma tradição de Freixo da qual fui simpaticamente lembrado pelo Paulo. Em troca prometeram-me uma churrascada na obra.

Floram os castanheiros e está de pé o alho-porro. Venha o São João.


a preparação para o São João à moda do Porto


figueira do inferno

Vigésimo dia - o pedreirô

dia-a-dia: pedra e mais pedra

A conversa esvoaçava entre a andorinha das chaminés e a dos beirais quando referi o andorinhão. O Zé Manel embirrou que seriam andorinhões os que ele via nas ribeiras, sem serem pretos como as andorinhas. Seriam andorinhas das rochas? Das rochas não. Quando ia pra lá com o meu tio e dormíamos lá, nas ribeiras, é que as víamos. Chamavam-lhe os velhos os pedreirôs.

As velhas, à lua em eclipse, diziam que a parte escura (ou a clara, não sei) eram os homens que lá tinham estado que deixaram um lençol ou uma colcha a tapá-la.

um minuto depois do eclipse

Ao Joaquim bastou-me dizer 'aranha' para ele entrar num frenesim para a matar. Uma aranha enorme, numa morte inglória sob um chinelo e uma vassoura. Nunca mais lhe falo de aranhas.

Hoje distribuí bacalhau pela malta da aldeia. Será que uma prenda perde todo o interesse se tiver o preço?

Décimo nono dia - larechas

dia-a-dia: pedra e mais pedra

Voltam as obrigações na obra. O empreiteiro passou por lá na semana passada e deixou os tubos presos ao pavimento, e tirando um tubo duma sanita que não ficou no sítio certo está tudo pronto para se fazer o enchimento do pavimento das casas de banho. Para a semana tenho de voltar para o fazer com os homens.

A parede acelerou - numa semana e pouco fecharam outro outão. Com a velocidade veio, inevitavelmente, a falta de critério. Como a pedra vem agora miraculosamente do palheiro demolido já há pedras grandes abundantes. Para grande pena minha tive outra vez de os repreender: mais pedra falheira, mais pedras compridas, menos pedras gigantes. Inventaram inclusive cunhos na vertical. Tanta pressa não sei para quê.

Ataquei as ginjas com a Mafalda. Colher um pouco, comer um pouco, podar mais um bocadinho. De cada ramo seco que cortávamos surgia mais um formigueiro. Quando se sentiam a descoberto, algumas das formigas corriam a esconder as larvas, enquanto que outras, mais bicho mau, corriam a atacar-me as mãos. A Clementina dizia que não eram formigas, eram larechas. Sei que eram inimigas das minhas mãos, e que cravavam os ferrões das suas cabeças vermelhas na minha pele e rabeavam, não sei se de gozo se de desespero.

Depois de vencermos as larechas e de colhermos todas as ginjas a Clementina perguntou-me se a outra gingeira também era minha. Na dúvida, colhemos o que pudemos.

ginjas daqui (gesto característico na orelha)