Quinquagésimo quarto dia - enxerto

dia-a-dia: manhã cedo
Os dias grandes são assim, preenchidos. Ontem, não sei se do vinho fino se da primavera que aí vem, prescindi de parte dos prerrequisitos de sobrevivência em meio gelado e dormi regalado. De manhã (e ao longo do dia), percebi facilmente, ao tirar peças de roupa sucessivas, que a primavera chegou. Não chegou foi às amendoeiras. A única verdadeiramente florida de Martim Tirado tinha em cima todas as abelhas da aldeia, cada uma delas requerendo para si a atenção da árvore.

a única amendoeira florida de Trás-os-Montes
Tinha a manhã cheia de compromissos. Chegaram comigo os pedreiros, para começar os muros de baixo, e o carpinteiro, para fechar o outão. A meio da manhã chegava o senhor do pladur, para assinarmos contrato e discutirmos pormenores. Tanto o compromisso que gastei meia caixa de fósforos e uma manhã inteira para perceber que os meus talentos de pirómano ainda estão por provar. Isso e a verdura dos ramos da roseira.

Enquanto a piromania ia e vinha, na obra o carpinteiro fechava o outão. A ideia dos casqueiros veio dum cardanho nas primeiras casas de quem entra em Martim Tirado, em que uma das paredes tinha em lugar de pedra, casqueiros, largos. Meses depois, chegou o dia de botar em obra. O carpinteiro já os trazia cortados, bastando apenas cortar as pontas com o ângulo e a medida certa. Trouxe também uma cantoneirazinha para que a base dos casqueiros ficasse distanciada da caleira, e porcas para distanciá-los verticalmente da chapa. Para que a água não fique parada entre a madeira e a chapa, sinónimo prematuro de apodrecimento da madeira. Tudo pormenores falados nos últimos meses e ultimado por telefone na última semana. Colocados os primeiros, surgiu outra questão: a espessura média dos casqueiros era de cinco centímetros, uns cinco centímetros abaixo dos dez centímetros prometidos. Ficou o compromisso de cortar os casqueiros um centímetro mais baixos, e colocar sobre estes uma régua que suportasse o beiral. Que foi colocada depois do almoço. Prueba superada. Ficou bonito, e eu fiquei com vontade de o mostrar a todos.

segunda tentativa: o parafuso entra por fora
Já com os pedreiros não foi tão fácil. Falei-lhes da minha vontade de fazer uma passagem entre o muro e a casa. Passado algum tempo encontraram uma boa laje (uma das ombreiras da porta original) do outro lado do terreno. Rogaram pragas que era muito longe e tal mas logo surgiu a solução - arrastar a pedra usando o camião como reboque. Como ombreira reutilizaram outra pedra, mais alta do que o muro. Um expediente que os antigos usavam muito. Quanto ao muro em si, tratava-se duma reconstrução / arranjo do muro existente. Expliquei-lhes que se queria uma alvenaria mais tosca que a das paredes das casa, e que o topo tinha de ser capeado (palavra do senhor António) com pedra que cobrisse toda a largura do muro, como era tradicional. A coisa está a compor-se.

o muro, ainda no início
Com o outão acabado e o muro encaminhado, tratei de preparar mais uma ida ao pinhal. Já sem as mariquices do gps. Primeiro arranjei umas varas compridas e direitas que se vissem ao longe e pintei-lhes a base com spray vermelho. Cheguei-me à Clementina e perguntei-lhes qual o passo seguinte. Que me iam ver dum ferro, mas que o lado a enterrar era o outro. Burro. Pintei o lado certo das varas, afiei as bases com a machada e enfiei-me monte adentro, com as varas e o ferro do Amílcar.

como não marcar um pinhal
E lá andei. Onde o marco era claro enterrei uma vara, onde devia estar um marco e sobravam pedras soltas reinventei um marco. Para a semana verifico tudo com o tio Silvério, mestre nestas serranias. Seguindo o exemplo do Amílcar fui abrindo alas entre os marcos, de modo a abrir o ângulo de visão entre eles, arrancando estevas e pinheiros malformados. O resultado computa. Em março entra a motosserra.

O enxerto já lá está, no cerejal, disse-me a Clementina, relembrando-me de regá-lo e de lhe colocar mais terra.

enxerto de cerejal

Quinquagésimo terceiro dia - pinhal

dia-a-dia: ainda o telhado
Já não sei a quantos marcos ia e olhei as mãos. A direita, principalmente. Vermelha, um pouco inchada, listrada de riscos brancos de roçar nos pinheiros e de arrancar estevas. A cena não era bonita, começava a esfriar e ainda queria ver mais marcos, mas a sensação de estar vivo e de isso fazer todo o  sentido sobrepôs-se a tudo o resto.

Isto ao fim da tarde. Depois de o empreiteiro ir embora, pelas três e meia, e segui pinhal adentro, munido apenas do gio e da serra de podas, não fosse surgir-me à frente algum pinheiro mal encarado. Do gio servia-me o gps, para que, quando achasse um marco, registasse as suas coordenadas. O pinhal pareceu-me maior do que quando lá fui com o tio Silvério, o que também pode ser erro meu. Os marcos são poucos e difíceis de detetar. Posso também ter andado a mapear marcos que não são meus.

Antes de ir para o pinhal acabei a poda das roseiras e, com um alicate pedido ao Amílcar, arranquei a rede que separava o pátio do quintal, onde as roseiras se enfiavam. Dei por concluída o arranjo preliminar do pátio, que já durava há meses. Fiquei contente.

Antes andei sobre o telhado com o empreiteiro, a colocar a caleira, que veio imperfeita. Tivemos de cortá-la com a rebarbadeira de maneira a ajustá-la ao lugar, dobrar pequenas peças para fechar os cantos. E ainda ficou a faltar a 'cola e veda', para fechar uns buracos. Estou um pouco renitente quanto à impermeabilização, mas logo se vê como fica quando rematarmos. O empreiteiro ficou confiante.

Antes ainda, durante a manhã, andou a retro pela obra. O condutor continua na sua insanidade habitual, e temos nós de nos desviarmos para não sermos comidos pelo bicho. Levantou-se parte do entulho que restava no terreno, arrancaram-se os cepos de parte das árvores que morreram, retirou-se o tanque de tijolo, tapou-se parte da fossa e das caixas de visita. No meio do rebuliço, tão atarantado estava eu, andava a apanhar pedaços de telha, de tijolo e de betão para os esconder debaixo da terra, que atirei uma inocente telhinha para longe, na esperança de poupar trabalho e mostrar serviço. O raio da telha, já nada inocente, foi cair mesmo em cima dum dos canos de saneamento, esfarrapando-o. Fiquei revoltado comigo mesmo. Faço mais asneiras que os homens da obra.

Dei vinte euros ao homem da máquina para abrir uma rampa para o campo onde tenho as amendoeiras. Pediram-me parentes que fizesse isso, para acederem a campos longe da estrada. A abertura de caboucos para plantar as cerejeiras ficou adiado, a máquina não passava entre as amendoeiras.

Os velhos só se queixam da falta de chuva. Dizem que sem chuva a amendoeira não deita flor, e assim não há fruto. Mais penúria.

Quinquagésimo segundo dia - à machadada

dia-a-dia:  quase fechado
Sinto que hoje fiz pouco, mas tudo juntinho dá um saco cheio de pequenas coisas. De manhã, por Moncorvo (tinha dormido em Foz Côa), entreguei a segunda versão do segundo pedido de pagamento. E comprei um machado. Não um machado qualquer, e gosto de o reforçar - é um machado com dois quilos de lâmina, que faz cunha. Comprei-o expressamente para rachar lenha, coisa que me agrada especialmente: gastar dinheiro numa ferramenta que tem um uso específico e que me fará, concerteza, muita falta. Passei ainda por Mogadouro antes de parar na Macieirinha para almoçar. Ao almoço tentei encabar o machado como me disseram na loja (usando óleo) e forçando a entrada da madeira martelando o ferro, mas sobrou uma porção enorme de cabo para além do ferro, o que não é muito fixe.

Durante a tarde testei o machado (e também a machada, que comprei há umas semanas) para cortar um ramo grosso da amendoeira que secou. Primeiro com a machada, o que resultou bastante bem. Ao fim de dez machadas já não falhava o golpe. Depois com o machado, para acabar o serviço. Se bem que é serviço para fazer com uma motosserra, fiquei satisfeito comigo próprio. 

Entretanto tinha começado uma fogueira, para queimar os ramos das roseiras (que se amontoavam perigosamente). O quintal dos meus avós vai ficando gradualmente mais apresentável.

Quinquagésimo primeiro dia - casqueiros


dia-a-dia: vista da rua

Ontem cheguei tão cansado da viagem que mal me sustinha em pé. Talvez um início de gripe. Tentei aquecer o corpo ao máximo antes de dormir, e para esse efeito encostei o aquecedor à cama, rezando para que esta não pegasse fogo. Foi a noite mais fria até agora.

O corpo já não me doía hoje de manhã, mas sentia-me tão frágil (sempre que tossia doía-me a cabeça, como que oca, com peças a menos) que preferi esquivar-me a trabalho braçal. Por ora. 

Fui ver da caleira, que está por fazer. Passei no carpinteiro. O senhor Carapuça, já velhinho, lá ia escavocando os casqueiros de pinheiro. O Bruno mostrou-me o resultado final. Esta ideia é tão peregrina e irreal que nem criei uma imagem do que queria. Pedi-lhe, no entanto, que não usasse os casqueiros serrados. De modo a evitar saliências, o pai do Bruno tinha serrado a face saliente, o que artificializava totalmente o casqueiro, retirando-lhe autenticidade.

os casqueiros

Antes de abalar para as Quintas comprei comida para a cachorra. Um medo vindo de sei lá donde punha-me a imaginá-la fraquinha, moribunda. Sempre era a mais doentiça dos quatro. Procurei-a no barraco, à espera de achar um cadáver, mas nada. Nem mãe nem filha. Diz-me a Clementina, fui eu que a dei, fui eu que a dei. Passou aí um homem que vende ração e que diz que precisava duma cachorra. Mais à frente, lá confessou que já se tinha afeiçoado ao bicho, que a soltava na eira e que a chamava, pequenina, e ela lá vinha, com as suas patinhas.

No larguinho, ao sol, os velhos debatiam a dívida e a troica. O telhado está quase acabado. Vejo pegas-azuis o dia todo. As amendoeiras estão muito atrasadas por não haver chuva. Da janela do comboio vejo uns começos de flores. É a primavera que vem aí.