Octogésimo terceiro dia - 38


A manhã já seguia avançada quando cheguei à obra. Mais uma vez houve lugar à grande luta entre os montadores e os eletricistas. Eu envolvi-me noutras polémicas e até à hora do almoço não larguei o telemóvel. A tarde passei-a envolto em poeira, continuando o fecho das juntas com terra. Ainda não estou certo do que estou a fazer mas vejo por todo o lado, mesmo nesta região, que qualquer cm² com terra ganha sempre alguma ervinha ou musgo. Só o tempo me dará razão. Ou ma tirará.

As Quintas foram invadidas por um novo fenómeno no espantalhismo, uma verdadeira rotura com uma escola de espanta-pássaros passada de pai para filhos e dos filhos para os seus filhos e vice-versa. O meu avô tinha na horta um mecanismo que, movido pelas águas do ribeiro, fazia com que ferros batessem entre si, orquestra despropositada que afastava os bichos da horta. Também as fitas são vulgares, normalmente rasgadas de sacos de adubo, assim como cds e outras bugigangas brilhantes. Agora a fita brilhante é novidade deste ano e pegou em força. Quando se vê ao longe um amendoal com uma fita em cada árvore é como se uma cabrada de faróis morasse nesse amendoal e comunicasse constantemente entre si. Se eu fosse pássaro tinha era medo.

Ao almoço perguntei à tia Alcina e ao tio Amílcar quantas pessoas teria Martim Tirado. A tia Clementina chegou no meio da conversa e fez questão de ela mesma fazer a contagem: residentes fixos: 38. Passado um pouco o eletricista pergunta-me onde se pode beber um copo. Aqui, beber um copo? Nada. Só em Mazouco, ou em Fornos, mesmo na Macieirinha há cafés mas não servem café, nestes lados é difícil. Quê? A minha aldeia tem vinte habitantes e há cerveja o ano inteiro. É a que sobra da festa.

Octogésimo segundo dia - crivando


Trouxe comigo a motosserra. Ontem tinha cortado, com a serra de cabo comprido, algum ramos secos dos olmos, e achei que hoje era o dia em que cortava os olmos mortos pela malina. Ao fim de algumas peripécias (falta de gasolina e óleo, motosserra engasgada) tinha dois olmos tombados sobre o caminho. Ia para desmontar as árvores quando achei que era altura de apertar a corrente. Quando desisti tinha meia motosserra desmontada. E duas árvores tombadas sobre o caminho. Sem a motosserra, peguei na serra de podas e desmanchei a árvore à pata. 

Como algumas das lousas se soltaram, segui o conselho do empreiteiro e comecei a encher as juntas com terra. Encontrei um crivo deixado pela minha avó na casa do avô velhinho (o meu bisavô). Enchi um balde com terra, crivei-a e pu-la sobre as juntas. Reguei tudo e repeti a dose. A Clementina, sempre previdente, veio repetir-me que a chuva ia levar tudo, se eu queria tinha era de pôr barro.

crivando
(foto)

uma primeira achega
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Andava eu nestes preparos e chegou o carpinteiro. Pela primeira vez, alguém que diz que o pavimento talvez fique bonito. Falámos de revestimentos, de métricas e de ripados, do parvo do arquiteto e as suas medidas irreais. Já o Bruno ia de saída e chamou-me. Então a motosserra? Homem santo, o Bruno. Curou-me a motosserra e aliviou-me a alma.

Octogésimo primeiro dia - engarradora


Pouca coisa se passou hoje na obra, mas muita coisa avançou. O empreiteiro só chegou depois do almoço, para pôr a calha do portão e o último telhão na cumeeira. Juntamo-nos nas casas de banho e concluímos que é necessário picar o chão da de cima. Os do pladur, que só chegaram pouco antes do almoço, começaram com a segunda camada de gesso cartonado, avançando já entre os caibros e deixando uma nesga para o rodapé negativo. Com o carpinteiro falei de mdf, folheado ou não, de velaturas, de parafusos.

castelinho
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Falei com o tio Amílcar da trepadeira, que voa até à base dos olmos e trepa árvore acima à cata de comida. Parece quase um rato. Não sei se não será a engarradora. Só se for a engarradora.

engarradora?
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Octogésimo dia - estevas


Dia trocado. O empreiteiro chegou, atrasado, e sem mais pedra. Passou a manhã a colar a pedra que eu tinha escolhido, e eu a olhar os carpinteiros a trabalhar. A pedra veio depois do almoço, estava eu em Moncorvo e no Poio a tratar de burocracias e de bancas de cozinha. Erro grave. O empreiteiro, sem o chato do arquiteto ao lado, tratou de cimentar parte das pedras à maneira dele, mesmo depois de um telefonema meu. Quem andou a corrigir a asneirada do artista? Aqui o chato do arquiteto.

Antes de jantar subi ao monte para seguir na limpeza do pinhal. Sem reparar, embrenhado no arranque de estevas, vi-me no meio do caminho, a puxar estevas mais pequenas. A limpeza avança, se bem que devagar. Mas com muito gosto.

Septuagésimo nono dia - foicinha


O empreiteiro não veio, temente da chuva. Vim eu. Com as poucas pedras que sobraram fechei grande parte do lajeado, ficando para amanhã o cimentar.

o lajeado, a caminho da conclusão
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Chaves: a notícia do dia. Pela primeira vez, depois das paredes, depois do telhado e das clarabóias, chegaram janelas com ferrolho e portas com fecho. Já não há cá bichos nem ladrões a entrarem por aqui adentro. Consequência disto, achei a casa mal trancada e voltei lá agora. Tudo mais trancado que o Banco de Portugal.

fechadinha
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Na ânsia de ferrolhos e fechos reparei no buraco para o fechador. Muito acima do sítio certo. O modelo que escolhemos (e qualquer outro que escolhêssemos) batia, por fora, no postigo, e por dentro, na janela. Coisa que eu percebi logo no primeiro desenho, e que o carpinteiro sabia mas esqueceu. Só hoje, confrontados com o erro, é que o carpinteiro me explicou que não podia furar a travessa, por isso pôs a fechadura por cima da travessa. Hora de telefonar ao fornecedor a anular a encomenda dos puxadores, a trocar por bolas.

Passada a meia-hora, alcei a foicinha bem alta no ar e ala que se faz tarde. Contrariando todos os que me diziam 'o que faz falta aqui é herbicida - mainada', comecei eu próprio a fazer o serviço do herbicida. Cortei tudo o que fosse mato alto (de tudo o que cortei, só reconheci cardos e aquela plantinha que também deita flores roxas, olhos-de-gato) e deixei ficar o mato mais baixo (muitos malmequeres). Desatei a cortar sem nada programado, ainda sem saber o que cortar nem o que fazer ao que cortasse. Ao ver os molhos a amontoarem-se decidi dar uso à palete e fiz uma espécie de compostor, junto a uma porta de chave perdida.

o primeiro compostor de Martim Tirado
(foto)

O senhor Acácio, filho do tio Amílcar, trouxe-me uma mão cheia de cerejas. As primeiras do ano. Infelizmente, ainda não chegou o tempo delas.

Septuagésimo oitavo dia - regras

Regra número 1 para montar um lajeado: comprar mais pedra do que a necessária. Diria 1/4 a mais. Assim pode escolher-se melhor. Regra número 2: não corrigir um erro com outro erro. Apenas se está a adiar a questão. Regra número 3: escolher e encaixar as pedras num dia, assentar (com cimento ou com o que for) no dia seguinte. Assim sobra tempo para escolher bem a pedra, pode voltar-se atrás e trocar pedras, tudo isto sem o stress de ter um empreiteiro com a colher de pedreiro à espera que avancemos. 

De manhã não havia água. O tubo roto de sempre. Quando cheguei o empreiteiro já tinha bazado. Sem água não há massa. Com as pedras novas fiz mais um pouco de lajeado. A entrada ficou acabada, para a semana fecha-se tudo. Seguindo uma dica da Clementina serrei os ramos dos olmos que já estão secos. A própria Clementina admite que não vai adiantar, a malina vai levar tudo, mas não custa tentar.

Diz uma miúda atrás de mim, no comboio: isto é tipo Montargil, no Castelo de Bode (!!!), as margens são iguais, entre o Porto e Régua é só pinheiros e eucaliptos, e entre a Régua e o Pinhão já há aqueles socalcos, tás a ver. Ó menina, bonito é do Pinhão para cima.

Septuagésimo sétimo dia - Couços

A tarde apertava. Fiz a borda de dentro do caminho, de seguida a borda de fora. Tinha acabado de desistir, de deixar tudo para o dia seguinte, chegando mais pedras para escolher, quando sinto um trator a passar. Para baixo só o Zé Manel, a cuidar da sua horta. Era mesmo. Levava o pai de pendura no arado. Ainda corri a chamá-lo mas não me ouviu. Encontrei-o no fundo do vale, numa horta que não a dele. Enquanto o pai tirava as pedras para um canto o Zé Manel vai arando com o trator. O sítio, se bem que inóspito no verão, tem água a correr. Na fonte à minha frente (Couços) estão duas rãs no bem-bom.

na horta
(foto)

Estamos agora na horta do Zé Manel (Olmo). Ele atarefa-se a fazer molhos com os espigos das nabiças, cortados com uma foicinha; eu fotografo bichos em flores e como morangos. Não sei se é do bucólico do lugar mas nunca me souberam tão bem.

na horta
(foto)

Vi o Zé Manel e o pai a plantar rebentos de cebola e logo me voluntariei para ajudar. O Zé Manel, qual super-homem da horticultura, planta e tapa à velocidade da luz. Quem começou nisto aos oito anos nem pensa no que está a fazer. Aliás, se parar para pensar fica-se confundido e já não sabe o que se está a fazer.

Algumas voltas ao motor e lá brota a água. Logo o Zé Manel, munido da sua enxada, abria sulco atrás de sulco, que se iam inundado. Ainda a água não tinha atingido o fim do sulco já ele o tapava e abria logo novo sulco. Sempre à velocidade da luz. Uma máquina. Se eu tivesse tempo. O meu pai, se fosse preciso, ficava aí a manhã toda a plantar as cebolas.

na horta
(foto)

Durante o dia voltámos ao lajeado. Os eletricistas e o empreiteiro e o Hugo estavam lá desde a manhã, mas os do pladur não. Telefonei ao patrão deles. Mais uma altercaçãozinha ao telefone e passado umas horas lá estavam eles. Era suposto, já que tinham de trabalhar em conjunto com os eletricistas. Haja paz na aldeia.

lajeado - 2 de 3
(foto)

Septuagésimo sexto dia - carvalhos

Ontem vi duas cobras mortas, só no caminho entre o Pocinho e a Macieirinha. E uma gineta. Viva. E papa-figos. Quantos.

Falei ao tio Luís dos carvalhos a caminho de Freixo (americano e, acho, negral). Reação dele: achava que só havia um tipo de carvalho. O que comprova a minha teoria em relação às quercíneas - as que se plantam têm nomes específicos (sobreiros, azinheiras), as que não se plantam têm um nome genérico (carvalhos).

Estou à espera do senhor do ar condicionado. Despachámos o ar condicionado e a bomba de calor pela Santos, e o montador ficou de os vir buscar à garagem. Nem sombras dele.

Igual para o empreiteiro. O compromisso de lá estar de manhã esfumou-se numa névoa de justificações mal amanhadas. Com pouco do pladur para decidir, virei-me para o lajeado da entrada de cima. É tão mais fácil trabalhar sem ter um empreiteiro a botar massa atrás de nós. O início saiu bastante bem, mas o calor e a falta de pedra boa ditaram resultados piores.

lajeado - 2 de 3
(foto)

Ao fim da tarde voltei ao pinhal. Muito trabalhinho.

Septuagésimo quinto dia - gaiola


Uma restolheira de conversas cruzadas, palavras novas, mundos que desconhecia. Uma nova: mosqueiro, o armarinho da foto, criado para guardar carne e peixe frescos da voragem das moscas. Outra: a sardinha é boa, é de marca. De marca? É, é da marca sedou. Sedou? Então, se foram dadas. Mais uma: recatreca, o nome que o tio Amílcar inventou para o trovão. Uma mulher taluda é uma mulher gorda. Gordinha, vá.

o mosqueiro
(foto)

Se bem que já o esperava, hoje de manhã alcei-me sobre a porta e apalpei o ninho. O pito que ontem era moribundo era já cadáver. Morreram todos. O gato levou o que sobrou. Um chapim-de-poupa, talvez à procura das crias, tanto bateu nas clarabóias que o Tiago, um dos montadores, o agarrou sem dificuldade. Até para fugir precisou de incentivo. As andorinhas também aproveitaram a ausência de portas (o empreiteiro levou-as ontem para as furar) para começarem um ninho, no quarto de baixo. Tapei-o para evitar outras tragédias. Já ontem tinha limpado o ninho que uma andorinha infeliz tinha feito sobre o contador da luz da casa do meu avô. Esse ninho, felizmente, não deu criação.

Estou derreado do trabalho dontem. As pernas pesam-me a cada passo. Consegui trazer os toros que restavam da amendoeira seca para cima, mas ao tentar o mesmo com o tronco desisti pouco depois de começar. O carrinho foi lá deixado pelos homens exatamente por estar estragado, com o pneu furado. Tentei com o carrinho novo da obra. Desisti quando caiu pela terceira vez. Fiquei com os braços marcados pelo esforço. A tia Alcina deixou o macho pastar no meu  quintal. É tipo um cortarrelvas que zurra.

macho cortarrelvas
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Septuagésimo quarto dia - lajeado

É como montar um puzzle, dizia-me um dos pintores que andam na casa da tia Clementina. Referia-se à pedra montada no chão, lajeado com lousa do Poio. Tinha grande receio do resultado do lajeado. Para já, posso  dizer que fica bem nas fotos.

lajeado - 1 de 3
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A chuva acabou e num dia fizemos um terço do lajeado. Sempre que lhe dizia para rapar o cimento entre as pedras, o empreiteiro lá resmungava que as pedras iam ficar soltas, que é o cimento entre elas que as segura, que não vai crescer musgo nenhum entre elas, etc. A maneira como os anos passam é do que mais me interessa na construção. Quero musgo no chão e nos muros e líquenes nas paredes. Quero voltar a ter olmos frondosos e que a ramada torne a canícula menos pesada. Quero roseiras, de folhas pequeninas, a bordear o beiral, recebendo quem entra num abraço verde.

Um pássaro fez ninho dentro da casa. Espero que os bichitos cresçam antes que venham os vidros das portas e janelas. Depois da andorinha e da Fidalga, este é já o terceiro hóspede da casa. Ele e os seus três rebentos.

pitos

Vim a Freixo a um funeral. Pediram-me folhas de amoreira, para alimentar uns bichos da seda. O calor voltou. Ontem vim pela estrada nova, mas volto de quim. Há coisas de que não abdico.

Passei na casa antes de seguir para a Macieirinha. Só encontrei dois dos passaritos. Um estava morto, o outro a meio caminho, o terceiro desapareceu. Não sei se foi o meu manejo que os deixou assim, se as quedas, se o abandono dos pais.

Veem-se estorninhos por todo o lado. Rabões, menos. Ontem vi duas cobras mortas na estrada. Estão a sair das tocas. Parece que pressentem a água, diz-me o Amílcar.

Septuagésimo terceiro dia - portas e janelas


Isto frusta. Tanto para fazer e arrumar e eu sem poder sair, preso pela chuva dentro de casa. 

Os carpinteiros chegaram de manhã. E com eles portas, janelas e portadas. A dificuldade do dia passou por ajustar portas e janelas à imperfeição das pedras (e à mente alterada do arquiteto, que só inventa). A minha presença serviu para verificar pequenos erros, a corrigir depois, e a atravessar-me à frente deles todos. Só para que não se esqueçam de quem manda aqui.

Portas roubadas a um turismo em Espanha
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Broca mole em pedra dura
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Portas do quarto de baixo e da cozinha
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Janelo dos quartos
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Os montadores chegaram pelas duas, depois de telefonemas e confusões. Pu-los a fechar paredes. Tenho de alegar urgência para os ter na obra. Tenho de os ter a trabalhar continuamente senão o muito que falta fica ainda mais atrasado.

Mais tarde chegaram os do ar condicionado. Talvez para a semana avancemos com mais tubos.

Amanhã há a festa. Com chuva, mas festa.

Antes da festa
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Septuagésimo segundo dia - xagarço


Dia de conhecer o monte. Primeiro o carvalhal entre as Quintas e Freixo. Construíram uma represa, já com água das últimas semanas. Os carvalhos parecem murchos com tanta chuva. Visitei também a 'serra', o cabeço à entrada de Martim Tirado. 850 metros. Por último, o meu pinhal. Parti da casa do Zé Manel pelo caminho aberto pela retro. Desci pinhal adentro e voltei pelo caminho que dá a volta ao monte.

Vista da serra
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Trouxe comigo uma ervinha, para aprender o nome. Xagarço. Já o tio Adelino me tinha falado do xagarço. As cabras adoram-na. É como uma esteva em miniatura. Até a flor é igual.

Ao chegar a Martim Tirado vi-me na traseira dum camião. Trânsito, em Martim Tirado. Coisa inaudita. Era o transporte das bebidas para a festa. UM CAMIÃO DE BEBIDAS.

UM CAMIÃO DE BEBIDAS
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Dormi a manhã toda. A chuva tombava do céu sem pausa e não havia ninguém na obra. Montadores, nicles, carpinteiros, na oficina, a botar a terceira de verniz nas portas e janelas. Amanhã há obra.