Nonagésimo dia - motopico

Hoje voltaram os pedreiros. Muito barulho, muita algazarra. Muito resmungo. Lá dentro, com o motopico (que curiosamente é elétrico) a sacar o que tinham feito a mais no chão das casas de banho. Cá fora, com o camião, a sacar as pedras que sobraram. Ontem choveu um nico. Vale de pouco.

Octogésimo nono dia - tremor


Acordei tarde. A noite dormi-a de uma penada, sem acordar nem me mexer, e só acordei às oito e meia. Os carpinteiros debelavam-se com mil dificuldades para arranjar apoio para a caixa técnica, com tanto cabo e tubo. Passei o pouco que sobrou da manhã em Freixo, a tentar fugir das burocracias. Durante a tarde acabei de fechar as juntas. Uma chuvada invernal, a primeira em muito tempo, benzeu o trabalho.


Ontem tremeu a terra, estava eu na cama. Do tremor não senti nada mas antes um rugir, que se aproximava de mim vindo de longe. Hoje era tema de conversa na aldeia.

Octogésimo oitavo dia - ginjas


Com os homens longe da obra passei o dia ao telefone, a garantir que tudo o resto avançava. Num destes telefonemas, junto ao olmo já quase seco, notei as engarradoras junto de mim, na sua rotina imperturbável cima-abaixo dos olmos. São uns bichos pequenos, que parecem caber dentro de uma mão. O bico é comprido, apropriado para escarafunchar nos troncos das árvores. Os que me circundavam acumulavam insectos na ponta dos bicos, certamente para as crias, e soltavam de quando em quando um pio curto, apenas para marcar o ritmo da caçada.

a engarradora
(foto)

Hoje foi o Luís que me veio dizer para esquecer o enchimento das juntas do pavimento. Segui no que estava a fazer. Já falta pouco.

Cansado de crivar terra, subi à gingeira para sacar o fruto. Não sei porquê mas tinha 1/3 das ginjas do ano passado. Aos ramos a que não chegava cortei-os. Dizem os velhos que ginjeiras e cerejeiras podam-se ainda com a fruta na árvore.

Octogésimo sétimo dia - a queda


Um senhor de Martim Tirado tombou do macho no domingo. Longe de casa, demorou três horas a voltar. Em sofrimento. No hospital apenas lhe deram um alívio para as dores, que logo voltaram. Amanhã querem levá-lo a um endireita de Foz Côa que durante o dia trabalha numa farmácia. Durante o dia receita, mas à noite é que endireita. Ninguém quis a minha ajuda. 

As paredes e tetos estão fechados. O único teto falso inclinado fizeram-no hoje. Está impecável. Começaram a colocar as calhas. A ver se ainda esta semana se começa o amassamento.

O carpinteiro, enquanto não chega o mdf encomendado, lá cortou umas tábuas de vinte para as paredes. Apurámos pormenores do móvel da cozinha.

as réguas
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Comprei calda para botar às parreiras, e o remédio para a Fidalga não engravidar de novo. Florem as silveiras. A gingeira já as tem escuras, mas não ainda maduras que chegue. São poucas e pequenas. Os soutos cheiram com tanta flor.

Octogésimo sexto dia - molhada

Picheleiro, montadores de pladur e carpinteiros. Seis pessoas na obra. Não é recorde mas pouco faltará. Os do pladur fecharam tudo o que fosse parede e teto, para a semana começar o amassamento; o picheleiro veio desviar tubos de ventilação e abrir um buraco para o extrator (da cozinha, do sistema de climatização passivo); os carpinteiros vieram ripar o pladur, o que antecede a colocação das réguas de mdf folheado. Muita confusão, alguma tragédia (reparar, assim de repente, que as clabóias da casa de banho de cima estão totalmente descentradas e nem sequer estão certas uma pela outra), alguma paz de espírito por ver a obra a avançar e os prazos a cumprirem-se.

o ripanço
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clarabóia fora do sítio
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Octogésimo quinto dia - cobra


Comecei hoje a juntar substrato à terra, na expetativa de que a terra areje mais e o musgo venha logo. Juntando o substrato e com o crivo novo, que criva menos, o trabalho avança rápido.

A Clementina chama-me. A irmã acabou de matar uma cobra. Ela estava ali, quieta. Com a cabeça baixinha, baixinha. E matou-a? Porquê? As cobras são más. Mordem. Alguma vez. É é é, então não é.

cobra do diabo
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Pladur, picheleiro e o homem das lareiras e recuperadores. Descobri hoje que se podem fritar ovos numa salamandra. Como não podia deixar de ser, quero uma com todas as forças do meu ser.

alguém ligou a luz?
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Entre cargas e descargas virei-me ao pulverizador do meu avô, que eu sabia na casa do mel. Enchi-o com água. Nada. Problema nas válvulas, está visto. O tio Luís achou logo o busílis da questão. Era a válvula.

o pulverizador
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Octogésimo quarto dia - cereja


Os dias avançam, a obra também, tentando manter o ritmo. Embróglios terríveis levaram-nos a trazer os técnicos do ar condicionado do litoral para o interior. Gente boa de Famalicão que não conhecia Trás-os-Montes e que comeram cerejas e partilharam um pedacinho das suas vidas comigo. Foi ao fim da tarde, com o serviço despachado. Eu colhia cereja com os velhos, para comer à mesa e para compota, e o senhor do ar condicionado, o patrão, se juntou a nós. Logo os velhos o convidaram a comer connosco, arranjando-lhe um saco para levar um pouco de Trás-os-Montes de volta para casa. Não aceitaram dinheiro pelas cerejas. Os dois dias de granizo, se bem que intervalados, inutilizaram parte da cereja e deixaram a outra parte amachucada, imprópria para venda, segundo eles.



Trás-os-Montes é a cereja, a castanha e a uva, mas mais importante que tudo isso são as pessoas. Que são de estimar.

Os pedreiros acabaram o serviço ontem, nem os cheguei a ver. Fica a obra.

o canto do galinheiro
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os cardanhos
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