Sexagésimo quarto dia - pladur

De manhã até às cinco, foi dia de pladur. Neste caso dos montantes metálicos das paredes das casas de banho. Um trabalho rigoroso e minucioso que exigiu a minha atenção constante. Esta técnica de construção aligeirada e prefabricada de paredes é fascinante. Rápida, limpa, gerando resíduos facilmente reutilizados ou reciclados. Ficou o esqueleto, pronto para novas fases.

quadro em branco
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o sucesso do pladur
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Percebi finalmente o funcionamento do malfadado fio azul. Coisa simples, mas terrivelmente eficaz. Tenho de arranjar um.


Sexagésimo terceiro dia - loureiro

dia-a-dia: a última da série. telhado acabado
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Seguindo conselhos estrangeiros, em vez de vir segunda à noite vim hoje de manhã. Conselho madrasto. Nem dois cafés mataram o acordar cedo e uma noite mal dormida. A única solução foram quarenta minutos de sesta numa saída do IP4.

Cheguei à hora do almoço. Para compensar o atraso trabalhei até às três, parei para comer e acabei a marcação do pavimento.

o que será um pátio 2
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Veio outro eletricista durante a tarde, ver a obra para preparar orçamento. De manhã falei com o carpinteiro, que me advertiu que a laje é tão irregular que precisa de ser acertada. Como se fosse receber pavimenta cerâmica, palavras dele. Transmiti a vontade do carpinteiro ao empreiteiro, que me veio com dívidas antigas e com a necessidade de pagar o referido atolachamento. Mal vi que as minhas invetivas não o afetavam, telefonei ao investidor. Logo chegaram a acordo.

À Fidalga chegaram-lhe as carraças. Cuidei disso. As gingeiras, ameixoeiras e cerejeiras florescem. Igual para o meu cerejal. Descobri um loureiro a renascer por debaixo das pedras do palheiro demolido da casa do meu avô. Dizem os velhos que ao sítio onde morava o meu avô chamavam Quinta do Loureiro. Encontrei-o.

gingeiras em flor
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Ao fim da tarde o empreiteiro confrontou-se com a necessidade de limpar o interior da casa, a fazer antes do início do pavimento atolachado. A casa está cheia de entulho de todas as fases que ficaram para trás. Serrim, cortiça, montantes do pladur, papéis e plásticos. Percebi que vai tudo parar ao contentor. Tamanha ingerência equivalia a vários meses de separação em minha casa. Peguei nos papéis e juntei-os todos, e juntei o plástico dos pacotes de aglomerado de cortiça em molhos. Amanhã boto tudo no contentor.

Pediram-me ainda agora para resolver a tdt, coisa nova cá na aldeia, que não funcionava. Descrentes, cansados, deram-me os comandos, sempre dizendo que o filho é que ia resolver tudo. Não é para me gabar mas nasci no meio de computadores. Pôr a funcionar uma televisão é assunto de neném.

O Alex ladra às ovelhas que passam. A Xeila cheira-me os pés. Mais um fim de tarde em Martim Tirado. Com o sol ainda baixo, o descanso sabe bem. É aproveitar enquanto não vem o verão.

Sexagésimo, sexagésimo primeiro e sexagésimo segundo dias - roofmate

dia-a-dia: rematando o telhado
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Segunda não havia comboios; segui no autocarro, a meio da tarde. Terça acabámos o outão e falei com o carpinteiro sobre a calha técnica e as portas. Quarta o empreiteiro acabou a cumeeira e começámos o pavimento exterior, com roofmate a marcar os limites, escolhendo as pedras para a frente das soleiras. Quinta veio um eletricista para orçamentar a obra e continuámos o pavimento.

Cheguei ao fim destes dias cansadíssimo, incapaz de escrever o que quer que seja. Ficam as fotos.

o que será um pátio
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Quinquaségimo oitavo e quinquaségimo nono dias - motosserra


dia-a-dia: escurinha

Desenvolvi o síndrome de Estocolmo em relação ao frio. Por mais que me convença que tenho calor, que se calhar não é preciso ligar o aquecedor na hora de ir tomar banho ou de vestir aquela camisola extra, ainda não encarei o facto de que a primavera já chegou. E quente, ainda para mais.

Ontem segui com o Hugo no segundo comboio do dia. Mais uma vez acedeu a vir. Para além da ajuda braçal (sempre útil) e da companhia, o maior prazer será o de fazer tudo o que faria normalmente sem ter de me preocupar em levar a máquina fotográfica comigo. O Hugo tem sentido estético e uma câmara, duas coisas muito importantes num fotógrafo.

olhando um monte de pedra

Almoçámos em Moncorvo. Na obra, o senhor António e o Paulo ultimavam já o muro de baixo. Só o capeamento inicial, já da outra semana, estava como eu queria, com lajes grandes de um lado ao outro do muro. No restante eles iam pondo uma pedrita mais achatada de cada lado e davam o serviço por concluído. No último pedaço, então, deixaram mesmo o cimento à vista. As pedras pequenas ainda vá, agora cimento à vista é que não. Apelidei de preguiça a desculpa deles de não encontrarem pedras boas, disse-lhes que a solução de pôr terra por cima do muro e regar para criar barro não servia, e apontei-lhes vários exemplares de pedras a pedirem para ser lajes. Resmungaram o que quiseram, mas ao fim da tarde já lá estavam as lajes sobre o muro.

Depois da conversinha seguimos para Freixo. O dia era glorioso - ia finalmente comprar a motosserra. Uma Sthil MS 181 com lâmina de trinta e cinco centímetros e dois cavalos de potência. Comprar uma dois cavalos com o Hugo. Eh eh.

Rematámos as compras com cinco litros de óleo, cinco litros de gasolina sem chumbo 95 e cem mililitros de óleo Sthil, para misturar nos cinco litros de gasolina.

E ala para o pinhal que se faz tarde. Eu com a motosserra e a serra de podas, o Hugo com a clagouça e a machada. Nem contava usar muito a motosserra - tinha ainda muita esteva para arrancar e muito marco para marcar -, mas como me esqueci do ferro para espetar as varas no chão acabei por começar logo o trabalho de motosserra. Primeiro, para experimentar, cortando as árvores derribadas ou que cresceram inclinadas, e depois abrindo rodeiras entre os marcos, trabalho mais apropriado a uma roçadora mas que também se faz bem com a motosserra. Não é que me fascine a ideia de cortar árvores vivas mas a silvicultura é mesmo isso. Trabalhar para o conjunto da floresta. Sacrificar as árvores mais débeis para que as outras possam prosperar.

Só largámos o pinhal com a luz falha, não por causa disso mas por ter acabado a gasolina. Ainda antes de voltarmos, lembrei ao Hugo o arroz de carqueja que lhe prometi e, destemido, fui a procurá-la, já quase sem luz. A única carqueja do bosque, que tinha visto das outras vezes, e fui achá-la, logo à primeira, apenas seguindo os marcos. Vitória absoluta para o ego.

De volta às casas, ao contrário do costume, os velhos ainda andavam na rua, apesar do lusco-fusco avançado, talvez pelo tempo ameno, talvez pelo visitante, filho de um dos casais. Ofereceu-nos morujas, enquanto separava as mais amarelas. Crescem junto aos ribeiros. Comemo-las ao jantar, temperadas como salada.

morujas

Hoje seguimos para a Cigadonha, mui venerável castelo junto aos caminhos que ligavam Carviçais a Mós e a Felgar. Curioso percurso, apenas com indicações nos primeiros e últimos cem metros. Obviamente, perdemo-nos. Um senhor que rebocava uma oliveira velha (que já me tinha ajudado noutra altura) endireitou-nos a rota. Se seguirem por aquele pinhal onde andaram a cortar, sempre junto à parede, encontram o caminho para castelo. Seguimos as instruções e, obviamente, perdemo-nos de novo. Descemos ao vale através de um carvalhal e árvores altas e certas, um delírio para os sentidos, que acabava num ribeiro de pouca água. Tirei as botas e molhei os pés. O Hugo teve medo do frio. E com razão.

Acabámos por dar uma volta bem maior do que o necessário mas terminámos em Carviçais, empunhando uma meia de bagaço bem no ar. Missão cumprida.

Na obra, os homens mostraram-nos o muro da entrada acabado. Uma das duas ombreiras da portalada tinha sido derrubada pela retro para poder passar (há meses já) e ontem ajudámos os homens a levantá-la de novo. Hoje calçaram-na e fecharam o muro com pedras novas. Ficou bem convincente.

muro novo

A Fidalga continua fraca. Comprei-lhe um antibiótico. Espero que melhore.

Quinquaségimo sétimo dia - falando de pinhos


dia-a-dia: o entulho vai desaparecendo

Dia de anos. Antes das dez, estava eu para sair, e telefonam-me. Engenheiro, bom dia. Engenheiro? Tou sim, engenheiro? Tou sim. Engenheiro, é o Nuno da Raiaplac. Eram os homens do pladur. A minha conversa telefónica dontem com o patrão deles, em que lhe disse que se continuava apenas depois de vir o eletricista, serviu para nada. Estavam lá desde as oito à minha espera para fazer as divisórias interiores. As divisórias interiores! O que ainda falta para lá chegar. Até placas de pladur trouxeram, para esse efeito. Vendo-os sequiosos de trabalho mostrei-lhes uma ponte térmica que ficara por corrigir e fui até ao carro tentar perceber se podiam começar já a encaixar o isolamento nas calhas, e onde. Faltavam-me elementos, ainda não falei com nenhum eletricista, e assim pedi-lhes para instalarem a cortiça em tudo menos à volta das janelas. Sempre se adianta trabalho.

já com cortiça

Esperava-me Freixo e mais um rol de papéis para serem assinados. Ao voltar a Martim Tirado, pouco passava do meio-dia, fui ver do tio Silvério. Ainda não voltara da horta. Tímido como sempre, pedi almoço na seguinte forma: não me arranja aí um pãozinho com qualquer coisa, que já me chega, ao que a Clementina me respondeu, pão não tenho, pus um a descongelar de manhã e ainda deve estar congelado. Obviamente que não percebeu o meu pedido. Assustado pela fome, rumei ao Artur, em Carviçais. Abençoado seja.

Procurei de novo o tio Silvério em casa. Disse-me a vizinha que à uma foi a ver de mim, que eu lhe tinha dito que à uma se ia ver o pinhal. Tretas. Nem tinha combinado horas. Já junto à casa encontrei o Amílcar, em visível alvoroço. O tio Silvério já lá tinha estado, e como eu não aparecia foram os dois ver dos pinhos. Já no pinhal desentenderam-se de razões e por pouco o Amílcar não lhe deu com a vara. Que era o que ele merecia. Então se para mim branco é branco e preto é preto, que não ando cá a confundir tintas.

A estória conta-se rápido. Ao contrário do que me contou da primeira vez e ao arrepio da opinião de todos, o tio Silvério dizia agora que os pinhos altos não eram meus. Pior, tanto não eram meus que pertenciam ao tio Amílcar. Parece-me uma estratégia suicida essa de tentar convencer alguém da posse de outro terreno que não o seu. Para piorar, ainda sugeriu que alguém tinha mudado marcos de lugar. Marcos cobertos de musgo!, garantia-me o tio Amílcar.

o musgo nos marcos

Não contente com a sua ideia, o Amílcar sugeriu o tio Avelino como derradeiro guardião da verdade dos pinhos. E o tio Avelino confirmou: aqueles eram mesmo os meus pinhos, e muitos mais encosta abaixo, até um antigo campo, coberto agora de musgo fofo e de pinhos. Com a certeza de grande parte dos marcos, resta-me agora sinalizá-los, criar uma rodeira a toda a volta do terreno e começar a serrar.

Quinquaségimo sexto dia - a flor?


dia-a-dia: vista do caminho
Pelas nove, em Campanhã, pensei, por largos minutos, que ia ficar em terra. O motivo era a greve dos maquinistas a horas extra, e dizia-me o senhor da bilheteira que corria o risco de me ficar pela Régua. Isto uma semana depois de ter optado pelo comboio como meio de transporte preferencial. Ela há coisas. Fiz mover a minha rede de contactos e lá surgiu a confirmação de que sempre havia comboio, mas que devia evitar o último e o primeiro comboios do dia. A greve é até dia 16. Almocei em Moncorvo (no aconselhável Lagar) e segui para Martim Tirado, onde os senhores do pladur já laboravam desde a manhã. A trabalharem quase sem indicações, tinham já feito a estrutura à volta das janelas, trabalho a fazer apenas com as janelas acabadas. De resto, falei-lhes das pontes térmicas a evitar e siga com o trabalho.

Os pedreiros já trabalhavam no muro de baixo. Já só lá andam o Paulo e o senhor António. O Hugo deixou tubos e fossa tapada e o terreno limpo. Fez mais do que a máquina. Também ajeitaram o muro da entrada. Limparam o topo, acertaram-no e encheram todas as brechas, incluindo a que sobrou entre o muro e a casa. As telhas são para voltar ao topo do muro e a parreira é para tornar a espraiar-se sobre ele e a espreitar os visitantes, mas enquanto isso não vem o muro parece-me outro, pouco familiar.

muro velho, cara nova
Procurei então o tio Silvério, marido da tia Rosa, irmã do meu avô e até então incontestado mestre das serranias. Ao ver-me chegar pôs-se fidalgo e comunicou-me que tinha de ir botar as cabras, que não podia ir comigo. O defeito é meu, mal habituado à presteza dos vizinhos. Muito a custo lá consegui sacar-lhe um compromisso: amanhã depois do almoço lá iria mostrar-me os pinhos. E lá disse, à mistura de muitas outras coisas que não percebi, que alguém tinha mexido nos marcos. À falta de Silvério recorri ao tio Amílcar, igualmente afamado nos idos da serra. Afinal, se a minha sorte não partia com as dele pouco faltava. Era o homem certo para o caso.

A missão do dia consistia em confirmar a posse dos marcos que sinalizei com as varas (2) e confirmar a preexistência dos marcos que inventei (outros 2). Os inventados não tinham qualquer validade histórica, como já esperava, e os outros dois eram mesmo meus. Os olhos treinados do Amílcar toparam mais três marcos, que prontamente limpei e sinalizei com varas. Os marcos obedecem a códigos visuais muito concretos, e só o vandalismo ou a caruma os fazem mentir.

A Fidalga está fraquita. A Clementina diz que desde o parto que vai largando um líquido, já quase sem sangue mas ainda assim preocupante. Começa a cair-lhe o pelo e não engorda. Parece sempre em agonia.

A flor da amendoeira não vingou. A chuva do fim de semana, que parecia pouca, deixou-as apenas a caminho da floração, mas nada que encante a vista. Das minhas só esta, que nem sabia amendoeira, foi capaz de cumprir a tradição.

afinal há flor

Quinquagésimo quinto dia - chuva

dia-a-dia: ao fim da manhã
Depois do almoço tivemos uma reunião informal de trabalho. Digo isto desta maneira porque foi o que aconteceu, apesar de eu não a ter convocado nem concordar de maneira alguma com a ideia. Chamaram-me os pedreiros para me dizer que o muro da entrada era bem era baixinho, para que as pessoas pudessem olhar lá para dentro. Entretanto chegaram-se os velhos. Ora eu tenho uma relação de amor com este muro, mais alto que uma pessoa, que sobreviveu à fúria da máquina, destrambelhado, a aparentar queda mas ainda capaz de mais umas décadas de vida. Tinha-lhes pedido que arranjassem o topo, calçassem algumas das pedras e fechassem a brecha que sobrou entre o muro e a casa. O coro que me rodeava aumentou, cada um à sua vez, os velhos concordavam, que haviam era de acertar o muro pela pedra do portão, não mais que metro e oitenta, assim já entrava o sol, ficava mais bonito, já não tapava a casa, etc. Reafirmei-lhes que nada disso, a minha intenção era exatamente a contrária, resguardar o espaço interior para os turistas, a vista é para baixo, não é para a estrada, mas nada. Continuavam a insistir. A custo, tive de interromper a discussão, de forma pouquíssimo democrática. Não estudei dezoito anos para agora não ter autonomia para decidir, a decisão já estava tomada, já chega de reunião, e essa coisas. Continuo a achar que lhes dou confiança a mais, mas também não sei fazer de outra maneira. 

Entretanto, o muro de baixo ficou bonito de se ver. Antes de ir embora preparei mais quatro varas para marcar o pinhal, a recomeçar na próxima semana, já com o tio Silvério.

super-muro
Ia falando (tema de conversa de sempre) sobre a chuva que tardava, ao que os homens me disseram, ontem choveu umas pinguitas, lá para a uma da manhã. Coisa pequena, nem se notava no chão. E o milagre aconteceu. Não sei de da minha imaginação, não sei de quê, mas ao longo da manhã começou tudo a florir. O que era uma ou duas amendoeiras floridas ao longe passou a campos inteiros de flores a surgir. Para a semana aterro no paraíso.