Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo XIX

Muitos anos depois faleceram, o Fidalgo e sua mulher. O palácio ficou desabitado e começou a degradar-se. Os filhos do fidalgo não queriam viver ali. Não se sabe por que razão.

Algumas pessoas, inimigas daquela família, diziam que os herdeiros do Fidalgo não queriam habitar aquele palácio, porque estava encantado e tinham medo dos fantasmas.

Então o mestre-de-obras Nuno Gomes Lopes, neto de Aníbal Lopes, que foi vizinho e amigo de Dom Baldo, comprou o palácio e mandou restaurá-lo, com um seu projecto e sob a sua direcção, depois de conhecer e respeitar toda a história daquela família, do mouro (que não se sabe com exactidão se era uma pessoa de carne e osso ou um fantasma), do seu castelo, das lendas das mouras encantadas, da mourama e da mouraria, do que diziam os bruxos (dos que falavam verdade e dos mentirosos) e da influência dos astros e das estrelas sobre o modo de viver das pessoas daquele povo. Para executar a obra contratou uns famosos pedreiros de Freixo de Espada à Cinta, conhecidos por Pintados.

O palácio está restaurado, com excepção da torre, e se antes estava encantado, agora mais encantado está. Quando a torre estiver concluída o Nuno poderá usar os títulos de Dom ou de Fidalgo ou os dois.

Quem olhar para este palácio ficará encantado para sempre.


 António Júlio Lopes (Natural de Martim Tirado)

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo XVIII

A noite ia adiantada. Traçámos os planos de busca dos salteadores de acordo com as informações recolhidas, os presságios da lua cheia, e os poderes misteriosos do meu cavalo. Seguiríamos pelo caminho da Floresta do Palão. Porém, para evitar que as pessoas da povoação soubessem para onde íamos, tomámos inicialmente o caminho de regresso a Moncorvo. Só quando íamos longe e já ninguém nos podia ver virámos na direcção da Floresta do Palão.

Seguimos por uns atalhos pelo meio dos soutos. Ouvíamos o repetido piar das corujas, musica agoirenta que nos causava arrepios de medo. Para prevenir a surpresa de qualquer confronto desembainhei a espada e o Botelho por sua iniciativa empunhou a lança. A atmosfera agoirenta adensou-se. O jumento zurrou e o cavalo relinchou. Ocorreu-me a ideia de que também ficaram com medo, depois pareceu-me que comunicavam qualquer coisa com as corujas, mais tarde pensei que animais sem asas não comunicavam com os que as tinham, que comentariam entre si qualquer sinal que vinha da lua cheia e, por último, concluí que nada sabia. Mais adiante lembrei-me de ter lido num livro que na antiguidade havia cavalos alados. Se havia cavalos alados também havia jumentos alados, por uma questão de igualdade. Sendo assim, os nossos animais poderiam comunicar com as corujas.

Continuámos a caminhar em alerta máximo. O Botelho ia à frente sem dizer qualquer palavra. De vez em quando fazia exercícios com a lança. Seriam para se treinar ou para libertar a sua ansiedade ou as duas coisas. Os nossos animais de vez em quando paravam repentinamente, espirravam sem estarem constipados, arrebitavam as orelhas, olhavam para os lados e recuavam. Seria um sinal de que nas redondezas havia qualquer coisa estranha e perigosa. Estávamos perto de umas grutas da floresta do Palão. Ouvimos os gritos de um homem que pedia ajuda, e dizia, além de outras coisas, que havia ali ladrões.

Ao sairmos de um pinhal vimos o homem que pedia ajuda a fugir montado num cavalo e atrás dele iam também a cavalo dois supostos bandidos. O Botelho, que ia adiantado, mal viu os salteadores investiu na sua direcção com a lança em posição de os atingir. Imprevistamente o jumento transformou-se em animal alado e passou a correr ou a voar a grande velocidade e com grande ruído.

Fiquei com receio de que o Botelho os trespassasse com a lança. Tivemos sorte porque os supostos bandidos, ao verem a sua vida em risco, deitaram-se abaixo dos cavalos e logo iniciaram a fuga. De nada lhes valeu. Cercados por nós e pela pessoa que anteriormente estava a ser perseguida, renderam-se. Traziam à cinta, cada um, um punhal de lâmina comprida, tendo sido logo desarmados e acorrentados.

Seguidamente o Botelho foi buscar os cavalos que eles traziam, um deles com alforges. Perguntámos-lhes se os cavalos eram seus. Responderam que sim. Logo o perseguido afirmou que conhecia bem o cavalo dos alforges e que pertencia ao Fidalgo Baldo. Um deles respondeu que o tinham encontrado abandonado e enquanto não o reclamassem pertencia-lhes, segundo as leis do Reino. Revistados os alforges ali encontrámos ouro que pertenceria a uma Santa e uma salva em prata onde estava escrito: “oferta do povo de Lagoaça ao seu pároco na comemoração dos seus vinte e cinco anos de sacerdócio".

Um dos salteadores era alto e tinha a roupa rota. No chão estava um chapéu roto e um tapolho. Perguntámos-lhes se aqueles objectos eram seus. Responderam que não e viam muito bem.

Entretanto nasceu o sol. Olhei para o jumento e pude verificar que não tinha asas, não havia nenhumas caídas no chão e estava calmo. Então pus-me a pensar: terei visto na realidade o jumento com asas ou terei pensado que as tinha só porque era muito rápido? Não tinha dúvidas de que vi o jumento com asas. O mesmo foi-me confirmado pelo Botelho, acrescentando que as mesmas desapareceram quando desapareceu o luar da lua cheia. Não havia conhecimento de que os jumentos se transformavam em animais alados com o luar da lua cheia. Haveria outras explicações. Naquela noite tinha dado água ao jumento da que recolhi com um cântaro na fonte da moura, para curar o seu reumatismo. É provável que tivesse virtudes mágicas para o transformar em animal alado, por si, ou com a ajuda dos poderes da lua cheia. Poderia também ter acontecido que uma ave se tenha espojado num cruzamento de caminhos e que no mesmo sítio se tenha espojado depois o jumento. Se tal aconteceu estava aberta a possibilidade de o jumento se transformar em animal alado durante o luar da lua cheia.

Estávamos prontos para partir quando um pastor de ovelhas se aproximou de nós. Começou por saudar-nos. Depois contou-nos que aquele sítio era muito respeitado, porque nas grutas que estavam à nossa frente moravam os espíritos de uns famosos artistas que há milhares de anos ali viveram.

Foram esses artistas que gravaram animais num rochedo na margem direita do rio Douro, perto da povoação de Mazouco. Algumas dessas gravuras estavam danificadas, restando intacta apenas a de um cavalo.

Havia pessoas que diziam que entre as gravuras danificadas estava um jumento alado e outras afirmavam que não é um jumento, mas um cavalo alado.

Regressámos à Quinta de Dom Baldo, a quem entregámos o seu cavalo, depois de o reconhecer. Era o cavalo que lhe tinham roubado em Vale de Ferreiros.

Comemos dos restos que ficaram do casamento e depois iniciámos o regresso a Torre de Moncorvo.

Com a valentia e grande coragem demonstrados neste caso, o Botelho poderia ver cumprido o seu grande desejo de ser comandante ou governador. 

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo XVII

Então ouviu-se o ranger do portão da cerca do palácio, e a Josefa abriu-o e fez-nos sinal para entrarmos. Um jardim, de forma rectangular, ocupava a parte central da cerca. Ao meio do jardim havia um espelho de água também rectangular, que logo se transformou em redondo. O Botelho não viu nenhuma transformação, talvez por distracção. De qualquer modo fiquei sem saber ao certo se o espelho de água, quando inicialmente o vi, era mesmo rectangular ou se o confundi com o formato do jardim, dada a forte luminosidade do sol de um céu limpo, que até feria a vista, o qual poderá ter criado ilusão de formas.

O jardim tinha rosas de várias cores e outras flores. Algumas daquelas plantas floridas, segundo constava, foram trazidas pelo mouro do Norte de Africa.

Depois choveu um pouco. As plantas guardaram uma parte daquela água para irem saciando a sua sede, e a outra parte transformaram-na em perfumes que iam espalhando no ar em sinal de agradecimento às nuvens pela prenda recebida, e para atrair os insectos.

Umas gotinhas daquela água ficaram a pairar no céu e então o sol, ao vê-las, lançou alegremente os seus raios dourados na sua direcção. Manifestaram recíproca paixão, formando um arco-íris para que todo o mundo o soubesse.

Associei emocionalmente as flores à delicadeza da noiva, à sua beleza, à primavera, à renovação e ao ciclo eterno da vida.

Circundado o jardim, estávamos à entrada de um forno ligado a uma adega. Aí duas doceiras do Felgar faziam os bolos do casamento e preparavam os assados de cordeiro. Uma vez dentro deparámos com vários presuntos pendurados do tecto, tábuas com dezenas de queijos de ovelha, umas pipas de vinho e bastantes pães de trigo cozidos.

A Josefa encaminhou-nos para a entrada do palácio. Em cima havia um brasão com os desenhos de uma torre, de abelhas a voar e um ramo de flor de amendoeira. A torre significava riqueza e poder, as abelhas trabalho e o ramo de flor de amendoeira beleza, cortesia, afectividade e nobreza.

O salão do palácio deixou-me surpreendido com o seu comprimento. Nunca tinha imaginado que houvesse uma salão assim, tendo havido também comentários idênticos do Botelho. A Josefa explicou-nos que se tratava de uma ilusão. Tudo resultava do reflexo dos espelhos colocados nas paredes.

À minha frente estava um quadro pintado a óleo cuja pintura representava Dom Baldo e a sua mulher, Dona Albertina. Ele usava traje de fidalgo: botas pretas altas, calças e camisas brancas, casaco e colete azuis, esporas de ouro tipo orientais e plumas no chapéu. Do seu lado direito, numa mesa decorativa, estava uma jarra de flores de amendoeira com abelhas a esvoaçar, semelhante ao brasão da família. Do seu lado esquerdo estava a Dona Albertina, com traje elegante e de qualidade correspondente ao de mulher de fidalgo.

Depois passámos para a salão do tesouro. Nas paredes havia tapetes decorados com cenas de caça e colecções de espadas e punhais. As espadas eram muito curvas na extremidade. Estas e os punhais tinham os punhos e as bainhas decorados com pedras preciosas embutidas de várias cores, sobretudo o azul marinho. Apesar de usar espada na minha profissão fiquei impressionado com o poder cortante daquelas que vi na parede. Em algumas vitrinas estavam elmos, esporas e estribos de ouro.

A Josefa pediu-nos para tocar naqueles objectos. Não fomos capazes de o fazer. Era-nos impossível mexer os pés e as mãos. Então explicou-nos que aquele tesouro tinha sido encontrado enterrado, dentro de arcas de pele de camelo, na torre do mouro. Para o retirar foi preciso chamar um mouro ou bruxo da Torre Dona Chama, que quebrou o encanto e voltou a encantá-lo naquela sala. Acrescentou que nas paredes do palácio de Dom Baldo residia uma moura e quando as pessoas se aproximam para roubar o tesouro, ela encantava-as deixando-as imobilizadas. Isso já tinha acontecido umas semanas antes com a quadrilha da Serra de Mós. Deu-nos pormenores sobre as características do seu chefe. Era alto e magro, usava calças e camisa rotas, um chapéu de aba larga com alguns buracos e um tapolho na vista direita, fazendo supor que aquela vista estava furada. O tapolho não só tapava o olho direito mas também metade da cara daquele lado. Havia quem afirmasse que ele não tinha qualquer defeito na vista e na cara e que usava o tapolho como disfarce. Era por isso que lhe chamavam o Tapolho de Mós.

A Josefa queria mostrar-nos as restantes divisões do palácio, a torre e os seus segredos. Tal não foi possível. Mal acabávamos a visita ao salão do tesouro ouviam-se pessoas a falar na cerca do palácio. Fomos ver, com excepção do Botelho e da filha da Josefa, que ficaram a conversar. Era o regresso do casamento. À frente iam os noivos e atrás deles os seus pais, com excepção do pai do noivo que já tinha falecido, os seus familiares e, por último, os convidados não familiares.

O cortejo parou devido a um acontecimento misterioso. Sem que nada o fizesse prever, do lado esquerdo da comitiva, a uns cinquenta passos de distância, num campo bem limpo, surgiu uma enorme plantação de palmeiras, agitadas pelo vento e trespassada por frescos e abundantes raios de sol. No meio desta havia uma estrada, em linha recta, em direcção à entrada de uma casa senhorial com apenas um piso e um pátio largo a toda a volta, sustentado por colunas. A casa estava caiada de branco, com excepção das extremidades das colunas e o rodapé que estavam caiados de azul.

Ao meio da casa havia uma entrada larga com as portas abertas e com sete velas acesas de cada lado.

Começou a ouvir-se a música de um pífaro mágico. Não se sabia se vinha do palmeiral ou do interior da casa. Então surgiu uma mulher alta e magra vinda do interior da casa em direcção à sua entrada. Usava um vestido branco que lhe chegava aos pés, um chapéu redondo sem abas da mesma cor em forma de cone e sandálias de pele fina. Demonstrava uma delicadeza surpreendente: caminhava devagar e parava depois de cada passo que dava, para logo prosseguir suavemente. Chegada ao terraço da casa parou por mais tempo. Depois curvou-se para a frente, cruzou os braços sobre o peito e começou a executar uma dança: girava em torno de si própria, primeiro devagar e depois com bastante velocidade, e nessa altura abriu os braços. Tive a impressão de que o espírito da mulher se uniu aos corpos celestes e girava com eles.

Dois cães, que estavam sentados à frente do pátio, deitaram-se no chão e adormeceram com a música do pífaro mágico. As aves pararam de voar e as árvores curvavam-se em homenagem ao músico que não se via e à dançarina presente.

Terminada a música e a dança, a mulher ficou a olhar para a comitiva do casamento com tantas lágrimas que podiam secar-lhe a alma em pouco tempo. Os cães aproximaram-se de nós com ar simpático, batendo com a cauda no ar.

Alguém duvidou da bondade do que se estava a passar e comentou em voz baixa que aquela mulher seria uma antiga namorada do noivo. A Igreja impedira este casamento por ela ser moura. Teria vindo ali para estragar a festa ou para lhe desejar boa sorte ao noivo. Dom Baldo que estava um pouco distante não ouviu este comentário. Porém, notava-se no seu rosto e na sua postura a desconfiança.

Pareceu ao Botelho que se tratava de um encantamento. Com grande velocidade, agora facilitada pela recente magreza, lançou-se na direcção daquele jardim, perseguindo com a sua lança os cães e a mulher até desaparecerem.

A governanta abriu as portas do salão principal e para aí se dirigiram os convidados. Muitos olhavam para a admirável decoração das paredes e dos tectos e outros para a comida. Ainda não havia ordem, nem para se sentarem, nem para comerem. Dom Baldo saudou os convidados e agradeceu-lhes a sua presença. Após ter dado sinal, o grupo musical de Mogadouro iniciou a execução de uma música, dedicada aos noivos, assim se cumprindo a tradição das casas nobres. O grupo musical era composto por quatro elementos: uma cantora, dois músicos de alaúde e um de rabeca.

Dos convidados de fora destacavam-se dois rapazes solteiros de famílias também fidalgas, um chamado Luís Comenda, que era do Canto, e outro chamado, Amílcar Pinto, que era da Portela.

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo XVI

Imergimos num silêncio quase absoluto, interrompido pelo ladrar intermitente de um cão de guarda do rebanho de ovelhas de Dom Baldo. Era um cão simpático que ladrava com bons modos e só o necessário. Pressentiria o aproximar de alguém ou de algum animal ou seria apenas para se distrair. Curioso, subiu ao cimo de um penedo para dali poder observar melhor o que se passava à sua volta.

Uma cigarra que estava pousada num pinheiro nas nossas imediações, acordada pelo ladrar do cão, quis mostrar o seu desagrado entoando um canto estridente e incomodativo para as pessoas e os animais.

Interrompeu o seu canto quando um bando de aves se aproximou para pousar na mesma árvore e, se pudesse, devorá-la. Não por qualquer ressentimento, mas somente por uma questão de sobrevivência. Insectos daquele tamanho davam uma boa refeição para uma ave grande e várias refeições se a ave fosse pequena.

Indiferentes a tudo isto, as formigas em filas intermináveis carregavam o cereal da eira para o seu celeiro.

Trazido pelo sol e pelo vento começou a ouvir-se o tropel de animais de carga e da música agradável das suas campainhas, o qual vinha dos lados da Fonte da Saúde, situada num desfiladeiro cujas profundezas dali não se viam. Apesar da distância o som ouvia-se nitidamente, devido ao eco produzido nos rochedos de ambos os lados do vale estreito. Rochedos aqueles compostos de variados tipos de rocha que se combinaram entre si de diversas formas, dando um brilho cintilante como se estivessem em movimento. Estas gigantescas rochas escarpadas apresentavam-se enrugadas, tal como as rugas da testa de uma pessoa com mais de cem anos. Seriam as marcas da sua idade ou da pressão exercida por algum gigante para lhes dar aquela forma. De qualquer modo eram acolhedoras: ali faziam o ninho as grandes aves planadoras, as aves de menor porte e ali se refugiavam as cabras selvagens, quando perseguidas pelos lobos. Os lagartos de diversas cores e tamanhos aí habitavam nas suas tocas, e passeavam-se ao sol para se aquecerem e caçar insectos, os quais se confundiam com a cor variada da rocha e do seu musgo. 

Ouvia-se também o falar de duas pessoas, um rapaz e uma rapariga, vindo do mesmo lugar, juntamente com o murmúrio da água da fonte.

Nisto, o Aníbal e a Alzira, que eram vizinhos de Dom Baldo, saíram apressados de casa e vieram ao nosso encontro bem atentos ao que de novo se passava. À frente chegou o Aníbal com duas crianças pela mão, o Armando e o António Júlio, e atrás vinha a Alzira com uma menina ao colo chamada Maria da Graça. Não demoraram a surgir na Portela duas pessoas a cavalo, um rapaz e uma rapariga, os quais vinham na nossa direcção. O rapaz usava polainas pretas, calças e camisa brancas, um colete azul e uma espada à cinta.

À Alzira parecia-lhe que eram o seu filho e a mulher deste, os quais viviam em Freixo de Espada à Cinta. Esperámos que se aproximassem. Tratava-se de uma caravana de cinco animais: os dois da frente transportavam o rapaz e a rapariga e os restantes malas e cestos com laranjas do pomar da Ventosa.

A Alzira e o Aníbal trataram o rapaz por Ademar, e a rapariga por Maria Eugénia. Esta trazia uma novidade: estava grávida e se a criança fosse um rapaz queria que se chamasse Arlindo. Prenderam os animais a umas pedras ao alto, à frente do palheiro do José Paulo, a uns cinco ou seis passos de nós. O Ademar ia tirando laranjas dos cestos transportados por um dos animais e descascava-as com uma pequena espada que trazia à cinta, com a marca de uma oficina de Vale de Ferreiros. Distribuiu-as pelas pessoas presentes, uma a uma, assinalando que eram muito doces e que curavam as constipações. Os contemplados comiam-nas devagar e com grande cerimónia. Depois lambiam os lábios para que nada se desperdiçasse. As cascas davam-nas aos cavalos. Impressionaram-me as boas maneiras daquelas pessoas. Provavelmente aprenderam-nas com o Fidalgo.

O Aníbal, surpreendido com a doçura e os aromas das laranjas, pediu ao filho que lhe comprasse a laranjeira que desse frutos idênticos àqueles para a plantar no seu pomar da Fonte da Saúde. Quando já não o pudesse cultivar ficaria para ele. Plantaria a laranjeira mesmo ao lado da fonte, de modo a ficarem ligadas uma à outra. A laranjeira e as laranjas beneficiariam da qualidade da água da fonte. A Fortuna, que usava como símbolo um ramo de laranjeira florido, augurava que as nuvens trariam sempre chuva. A fonte nunca se secaria, renovar-se-ia sempre e a laranjeira também. Haveria sempre um amanhecer depois de cada entardecer. As laranjas teriam a cor do sol ao entardecer e ao amanhecer.

O Ademar e a mulher negociavam em tecidos de linho, de seda e lã, tendo aprendido a profissão de mercadores quando viviam em Viana da Foz do Lima. Eram amigos do judeu que estava junto de nós. Tratavam-no por Albino. Este, que tinha uma filha para casar, logo mostrou interesse em ver a mercadoria que traziam nas arcas. Gostou das colchas de seda e de linho e depois de muito regatear o preço sinalizou a compra de algumas peças com moedas de ouro.

O Ademar deu voltas ao fundo de uma das arcas, transportada por um dos cavalos. Dali tirou uma guitarra de braço comprido, chapéu e capa pretos idênticos aos que usava o Albino. Depois de pedir licença pôs o chapéu na cabeça e vestiu a capa.

Despertou a minha curiosidade o facto de o Ademar, não sendo judeu, usar um chapéu daquele estilo, e uma capa judaica. Provavelmente estaria convencido que um seu antepassado longínquo era judeu ou então traria aquele traje para o vender nas feiras. De qualquer maneira relacionava-se bem com o Albino e a Eugénia, e acabou por afirmar que conhecia uma filha daquele, chamada Raquel, da qual era amiga.

A pedido do judeu o Ademar tocou lindamente uma canção antiga e bastante conhecida enquanto aquele a cantava tão bem que nos causou grande emoção. Depois cantaram os dois juntamente e a Eugénia tocava um tambor e dançavam em círculo. Nesta situação, ambos com trajes idênticos e a cantarem e a dançarem juntos, afigurou-se-me que se pareciam um com o outro, ou seria imaginação minha.

O Ademar, quando ia com a sua caravana às feiras, tocava esta e outras canções por prazer e para atrair o povo, e depois procurava vender-lhe as suas mercadorias.

Da letra da canção recordo-me apenas que repetia muitas vezes a ideia de que haviam de voltar.

Não se sabia ao certo qual o significado da ideia de voltar da canção. Talvez não passasse da imaginação do poeta que a escreveu. Ou seria um poeta judeu que desejaria voltar a Israel ou interpretaria um sentimento comum dos judeus de regressar à terra dos seu antepassados.

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo XV

Entretanto, saiu da cerca do palácio um grupo de pessoas com uma noiva montada a cavalo. 

Vinham em direcção ao lugar onde nós estávamos: à frente caminhava um casal, cuja mulher era Dona Albertina e o homem era Dom Baldo. Este perguntou-me, em tom cortês, o que estava ali a fazer. Respondi-lhe que estava ver o belo palácio - ou castelo - de Sua Senhoria. Ficou muito contente e agradeceu com bons modos. Depois de pensar um pouco esclareceu que ele era Dom Baldo ou Fidalgo e que Sua Senhoria era só a sua mulher, de acordo com as regras da nobreza. Creio que as regras da nobreza ensinam que os fidalgos se podem tratar também por Senhoria e suas mulheres por donas.

Em particular perguntei-lhe sobre as características dos salteadores que o tinham ferido e roubado, para procurá-los e levá-los à Justiça. Respondeu-me que naquele momento não tinha tempo para isso e que esperássemos pelo seu regresso do casamento, convidando-nos a participar na boda. Chamou pela Josefa, sua governanta, a quem disse para nos mostrar o palácio e a torre logo que terminasse o trabalho que terminasse o trabalho que estava a fazer.

Terminada esta conversa alguém da comitiva perguntou-lhe se não queria usar a sua espada na cerimónia do casamento. No momento não tinha a certeza se ficava bem fazê-lo. Pediu que fossem buscar a espada e o livro de cerimónias dos Fidalgos. Abriu-o no capítulo terceiro e no seu artigo quinto estava escrito que a deviam usar nas cerimónias de casamento dos filhos ou das filhas. Pôs a espada à cinta do seu lado esquerdo, tal como ensinava o livro, e a comitiva seguiu sem mais incidentes.

O fidalgo Baldo era um homem alto e magro, com olhos cor de açafrão, com uma barba comprida como se fosse oriental. Levava uma camisa branca, laço, colete, casaco azul, calças brancas, polainas pretas de cano alto, um chapéu de aba larga e uma capa de cerimónias.

A sua mulher também era alta e magra com rosto de características lusitanas. Levava uma saia comprida de cor bege com barra azul larga com flores de amendoeira bordadas à mão, um lenço azul na cabeça e uma sombrinha, tudo de acordo com a condição de mulher de fidalgo.

Dom Baldo segurava a rédea do cavalo. Uma colcha de seda feita em Freixo de Espada à Cinta cobria a sela do cavalo. Na colcha estavam bordados bichos-da-seda, uma amoreira cujas folhas lhes serviam de alimento e um freixo com uma espada à cinta, símbolo daquele povo.

A noiva que ia a cavalo era a sua filha mais velha, de nome Maria. Mostrava a sua alegria no rosto redondo e claro. Levava um vestido branco, o qual lhe chegava aos pés, uma sombrinha, um ramo de rosas brancas do seu jardim, argolas grandes e um colar, tudo em ouro amarelo. Ia casar-se com um rapaz da Quinta da Estrada, que se chamava Gordete. Um pouco mais atrás vinham os irmãos da noiva, duas raparigas chamadas Clementina e Alcina e um rapaz chamado António.

Enquanto esperávamos falámos com algumas pessoas que por ali passavam, sobre a presença ou não dos salteadores naquela zona. Entre elas um peleiro, conhecido por Judeu de Lagoaça, disse-nos que durante a última noite desconhecidos assaltaram a igreja daquela povoação e a residência do padre, donde roubaram ouro e prata. Constava que se tinham refugiado nas grutas da serra do Palão. 

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo XIV

Quando já estávamos perto do palácio de Dom Baldo, mandei o meu ajudante prender os nossos animais a um olmo e que fosse ao comércio comprar dez reis de cevada fresca para lhes dar.

Olhei novamente para o palácio quando estava a uns cinquenta passos de distância, o qual pela sua originalidade me causou espanto e admiração. Um palácio de uma torre tão nobre naquela serra! Nem acreditava que fosse real o que estava a ver. Era um palácio fantástico.

As paredes eram de pedra. As pedras eram de um xisto invulgar, todas diferentes e de grande beleza.

Pareceu-me que tinham vida e que se moviam em varias direcções, algumas mais rápidas e outras mais devagar, de acordo com a sua inclinação. Outras estavam dormindo, outras associavam-se formando barcos à vela, esta de tela fina, que transportavam a nossa imaginação em direcção às estrelas ou até aos mistérios da origem do universo.

Como era possível não chocarem umas com as outras! Talvez a Providência o quisera assim ou porque apesar de serem todas diferentes tinham o mesmo valor, ou tinham um poder desconhecido que evitava a colisão.

Quando estava mais perto tive a impressão que elas se moviam num lago de águas limpas e pouco depois não tinha dúvidas de que era mesmo água boa para beber, como aquela das fontes mais famosas. Então apareceu uma mulher a cantar, com um vestido da cor do fogo, sentada numa pedra que flutuava na água, a qual se transformou numa mulher a fiar com uma roca à cinta e uma pedra à cabeça. Pôs a pedra no chão, a qual passou a jorrar água como se fosse uma fonte. Acreditei que de acordo com lendas antigas aquela água fosse milagrosa e que pudesse curar a minha doença e a do jumento.

Aproximei-me para a beber e encher uma cântara de barro. Surpreendentemente, ao tocar nas pedras a figura e o cenário desapareceram. Então lembrei-me do que havia lido no livro sagrado, o Alcorão, que é mais ou menos assim: ninguém deve tocar numa mulher muçulmana, a não ser o seu marido. Afastei-me das paredes e logo continuou a cena interrompida. Sem tocar nas pedras enchi o cântaro do jorro da água da fonte.

Um pouco mais distante pareceu-me que as pedras andavam no espaço cósmico, semelhantes aos cometas e depois com o girar do sol algumas brilhavam como as estrelas e outras espalhavam uma luz suave como a da lua cheia. Talvez fossem mensageiras das estrelas e da lua.

Depois parecia-me que tinham rostos jovens, calmos e encantadores. Provavelmente eram o espelho da beleza e serenidade de uma pessoa ou fantasma que vivia dentro delas.

Elas eram a memória do fogo antigo no interior da terra, da força erosiva dos ventos e da água, dos diferentes climas da terra e dos seres vivos primitivos que com elas se fundiram.

O homem ao observá-las impressionou-se com a sua beleza misteriosa, acreditou que transportavam os segredos do princípio do universo e apaixonou-se por elas.

Para quem era aquela mensagem? Era para ele, e logo começou a trabalhá-las para construir casas, castelos e palácios, impregnando-os da sua imaginação criadora, dos seus sentimentos, dos seus sonhos, da sua cultura, dando-lhes vida e criando quadros como os dos pintores famosos. Queria que a sua obra viajasse no tempo.

A torre, também construída de pedras semelhantes, era circular, e tinha várias janelas, algumas alinhadas com o nascer do sol no início do Verão e do Inverno. Outras eram utilizadas para durante a noite observar o céu. Era importante para os camponeses saberem quando se aproximava a época das sementeiras e das colheitas.

Numa das suas pedras estavam gravadas umas palavras em árabe e um desenho de um homem que observava os astros. Não tinha nenhuma ideia sobre o significado daquelas palavras. De qualquer modo o desenho significava certamente que a torre serviu de observatório astronómico dos mouros.

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo XIII

Já perto do cimo do monte avistámos à distância uma povoação com muitas casas do mesmo estilo, dispostas em círculo, como uma espécie de observatório astronómico e, no meio delas, erguia-se uma torre também circular e um palácio.

No cimo da torre via-se um grupo de pessoas, cada uma com um saco ao ombro com todos os seus haveres. Creio que esperavam por uma nuvem que se aproximava. Então ergueram uma escada para subirem para ela. A nuvem, admitindo que adivinhou o desejo delas, transportá-los-ia seguindo o caminho do sol e do vento, ou quereriam elas que as levasse para a eternidade, ou teriam apenas um sonho de viajar nas nuvens. As velas acesas na torre iluminariam a viagem ou serviriam apenas para manter vivo um sonho, uma fantasia, de viajar não se sabe ao certo para onde.

Entrámos na povoação para a visitar. As casas, construídas em pedra de xisto, tinham as paredes arredondadas, e os tectos a forma de cone como as chaminés dos vulcões extintos que se encontravam à sua volta. As casas, a torre, o palácio e o meio circundante harmonizavam-se. As pessoas respeitavam a natureza e gostavam de viver ali. Impressionou-me a cor das pedras das casas: um azul claro semelhante ao azul do céu limpo. Lembrei-me de ouvir dizer a um sábio que em tempos muito recuados o tecto de qualquer homem era o céu em qualquer lugar onde estivesse. Só depois construiu as casas de pedra, os castelos e os palácios. Perdeu a liberdade de viajar. Ter-se-á arrependido. 

No cimo, os tectos das casas tinham uma faixa circular de cor branca. O mesmo sucedia na primavera aos montes quando tinham nuvens ou neve nos cumes. O cimo dos tectos seria construído em pedra branca, estaria pintado de branco ou seria uma nuvem que ali adormeceu ou ali quis apenas repousar.

À volta das casas havia plantas e ervas aromáticas floridas e ao longe viam-se campos cobertos de trigo e de centeio. As diversas cores e formas das flores levavam-me a supor que havia um concurso de beleza entre elas ou um concurso para atraírem os insectos mais simpáticos. Miraculosamente iam mudando os matizes das cores, conforme a espécie dos insectos que se aproximavam. Parecia que existia uma especial estima entre as flores e os insectos que as visitavam, traduzida numa admirável delicadeza recíproca.

Algumas daquelas plantas trepavam pelas paredes das casas e davam flores elegantes que caíam no chão das ruas, formando tapetes perfumados. Talvez quisessem agradar aos habitantes para não as cortarem ou procederiam assim desinteressadamente.

Das ervas aromáticas faziam-se chás, simples ou com diversas ervas misturadas. Elas curavam ou supunha-se que curavam algumas doenças das pessoas, ou aliviavam as suas dores e davam-lhe boa aparência física e bom estado de espírito.

Alguns habitantes vestiam trajes típicos, de tecido fino de cor clara, sobretudo branco, bordados com fio vermelho ou cor-de-rosa, e usavam chapéus com a forma das cúpulas das casas, e eram altos, elegantes, simpáticos, e pareciam felizes. Estes trajes usavam-nos especialmente aos domingos ou em dias de festa.

Entrámos numa casa a convite dos seus habitantes. O chão era feito de barro batido, de cor viva, dividido em rectângulos com divisórias de madeira. Para dar maior consistência ao barro misturavam-lhe palha de centeio. A casa tinha uma divisória ao meio, em madeira. Uma parte servia de cozinha e de sala e a outra, com duas divisórias, para dormitório. A luz do sol entrava sobretudo pela abertura do tecto. A luz suave e abundante dava-me uma especial satisfação e afastava as minhas preocupações. Gostaria de viver ali. A temperatura no interior era agradável: o ar entrava pelo postigo da porta e saía pela chaminé, renovando-se constantemente. Na divisória da cozinha viam-se umas pedras no chão onde se acendia o lume para cozinhar, buracos nas paredes, que serviam para guardar diversas coisas, um escano, um armário com cantareira, várias talhas de barro e uma tulha para guardar o cereal.

Ofereceram-nos para comer pão e queijo de ovelha curado e para beber uma cântara de água. O Botelho, depois de muito gabar a comida, bebeu da água da cântara.

Não demorou a ficar enjoado, com a cara vermelha, mais magro e alto e o nariz comprido. Dizia que ouvia pessoas a falar, sem que elas estivessem presentes. Seguiram-se dores pelo corpo todo.

A mulher explicou que ele bebeu não água mas um xarope destinado a impedir o sangramento excessivo das mulheres depois do parto. Era um xarope leve quando o fez, mas com o passar do tempo parte da água sumiu-se e tornou-se mais forte. Tinha-o guardado num buraco da parede, foi verificar o seu estado e por descuido deixou-o em cima da mesa das refeições. 

Não quis dizer quais os ingredientes que usava para o fazer. Por acaso vi num buraco da parede uma malga com cravagem de centeio, também conhecida pelo nome cornelhos, e fiquei convencido de que os utilizava para fabricar aquele xarope.

Entretanto agravaram-se as dores. A mulher foi ao armário buscar outro xarope, este feito pelos monges da Cigadonha, para acalmar as dores. O Botelho bebeu dois ou três goles dele e sem grandes demoras tornou-se muito bem-disposto.

Surpreendentemente este xarope entrou em guerra com os seus intestinos e por isso saiu rapidamente de casa, saltou por cima dos muros, em direcção a um bosque.

Mais tarde soubemos que os donos da casa para a qual nos convidaram a entrar e a comer eram familiares dos salteadores que nós procurávamos. Ter-nos-ão dado o xarope para nos impedir de prosseguirmos a nossa viagem.

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo XII

Em dia de tanto calor despertou-nos a atenção o murmúrio da água de uma fonte. Não a víamos, talvez devido a umas árvores que se encontravam à nossa frente ou a algum penedo. No cruzamento os nossos animais, por sua iniciativa, viraram na sua direcção. Era a fonte dos Couços, famosa pela pureza e frescura da sua água, tal como a da Fonte da Saúde.

Nisto ouviu-se uma pessoa a cantar. O canto era alegre e suave. Surpreendeu-nos não podermos saber donde vinha a voz, talvez devido ao eco repetido que fazia no vale. Enquanto falávamos no assunto, vimos que uns ramos de uma figueira se mexiam, sem que houvesse vento ou que se visse qualquer pessoa que os fizesse mexer. A situação era estranha. Por precaução empunhámos as nossas armas. O Botelho gritou: apresente-se o cantor ou o fantasma. Então saiu de trás de um muro um rapaz conhecido do Botelho que andava ali com um cesto a colher figos e uvas. Nesse momento deixou de se ouvir cantar e os ramos da figueira já não mexiam. Seria ele quem anteriormente cantava e mexia nos ramos da figueira.

Entretanto chegaram várias pessoas à fonte, para dar de beber aos animais e transportar água. No dorso dos animais traziam uns cestos de vime com cântaros de barro. As mulheres usavam lenços na cabeça, as mais novas de cores variadas e as mais velhas de cor preta, segundo a tradição.

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo XI

Continuando a viagem íamos ambos calados. Só se ouvia o tropel dos nossos animais, o seu espirrar intermitente para afastar as moscas, o ruído das quedas de água e o incómodo cantar das cigarras, situação que era muito aborrecida para mim. Então pedi ao Botelho, que era natural de Martim Tirado, para falar da história do Fidalgo e da sua Quinta.

Segundo o meu ajudante, Dom Baldo, antes de ser Fidalgo, era conhecido pelo apelido de Estanqueiro, o qual vinha da sua antiga família da povoação de Mós. Levantava-se cedo, logo depois do cantar do galo na capoeira, e ainda de noite rumava para os campos que cultivava com dois jumentos, cuja preocupação era fazerem o menos possível. O Estanqueiro contrariava a sua preguiça com umas ligeiras chibatadas. Não os queria molestar muito pois sabia que aqueles animais tinham pouca força, não nasceram para trabalhar e queria evitar remorsos de agredir animais tão mansos. Mesmo assim com eles cultivava os cereais necessários para o seu consumo, depois de guardar as sementes para o ano seguinte, de pagar as avenças ao barbeiro, ao ferrador e as maquias ao moleiro. Além disso, na segunda parte do dia guardava um pequeno rebanho de ovelhas e com dois galgos caçava coelhos e lebres e de vez em quando um pequeno javali. Colhia uns cestos de uvas, das quais guardava algumas para passar e restantes pisava-as num tanque de granito, cujo vinho dava para encher umas duas ou três talhas de barro. O vinho era bom devido à qualidade das uvas e ao modo como o fazia. O segredo de o fazer assim guardava-o só para ele.

A sua principal distracção, especialmente quando guardava o rebanho, era tocar flauta que ele próprio fez de um ramo de sabugueiro. Inventava as músicas que tocava, inspirado no canto das aves, das cigarras, no soprar do vento, nas quedas de água, no cair da chuva e no uivar dos lobos. Não se saía nada mal. Havia mesmo quem o gabasse de tanto jeito para a música. De qualquer modo convidavam-no para tocar em festas e ele aceitava.

Perto da casa dele havia uma quinta com terrenos férteis e muita água, e um palácio de uma torre. Pertencia a um mouro, que desapareceu dali havia muito tempo em circunstâncias misteriosas. Talvez tivesse ido ao Norte de África visitar a família, como era seu costume, e tivesse ficado por lá, vivo ou morto. Constava que a quinta estava encantada por uma moura que a guardava. Ninguém ousava entrar ali, com receio de que alguma coisa trágica pudesse acontecer.

Para espanto e admiração de todos, o Estanqueiro anunciou que tinha comprado aquela quinta, sem explicar a quem a comprou, por que preço e onde foi buscar o dinheiro. Não a ocupou logo. Uns dias depois do anúncio da compra, apareceu ali com o bruxo da Torre D. Chama, que era o mais poderoso de toda a região, e com três ajudantes, também bruxos. Tanto procuraram que encontraram a fonte da quinta onde morava a moura que encantava a quinta, e negociaram com ela. Esta permitia que Dom Baldo entrasse na quinta com a condição de a deixar morar no palácio ou na torre.

Firmado o contrato com a moura, o Estanqueiro aproveitou a proximidade da Feira dos Gorazes, que se realizava todos os anos em Mogadouro, para aí trocar os seus jumentos por dois cavalos, dos mais caros, pagando logo a diferença em dinheiro. Aí comprou também a pronto pagamento dois rebanhos de ovelhas. Um indivíduo da Macieirinha, que antes morara nas Peladinhas, conhecido por Quim, assistiu ao negócio.

Contratou pessoal suficiente para cultivar a quinta e para reparar o palácio e a torre, o qual em tamanho e qualidade era o melhor das redondezas. Para recuperar a torre e o palácio chamou mestres de obra famosos.

Passou a vestir-se como um nobre. Mudou também o seu apelido de Estanqueiro para Baldo. Este apelido era usado pelo Conde de Vimioso.

Então as pessoas do seu povo e dos povos vizinhos passaram a tratá-lo por Fidalgo Baldo ou Dom Baldo. O Botelho não acreditava que estes títulos fossem oficiais. Terá sido ele que os pôs a si próprio.

Quanto à origem do dinheiro havia várias opiniões.

Algumas pessoas diziam que o Estanqueiro teria enriquecido com o negócio do minério. Comprá-lo-ia na Fonte Santa de Mogadouro ou na Quinta das Pereiras e vendê-lo-ia aos castelhanos perto da fronteira de Freixo de Espada à Cinta. Tudo em segredo. Isto era a voz do povo, que umas vezes acerta e outras erra. Só é seguro que ele tinha uma mina de ferro na ladeira da Odreira que herdou de seu pai, a qual vinha do tempo dos romanos. Mas nunca a explorou, nem ninguém queria explorá-la. Tudo porque segundo os relatos antigos aquela mina era muito comprida, atravessando o monte, e as pessoas e animais que lá entravam não voltavam a ser vistos, salvo um cão que entrou num lado do monte e saiu do outro lado. A água que vinha da mina, antes das pessoas e animais lá desaparecerem, saía limpa e depois passou a ser vermelha, aumentando o medo de lá entrar.

Havia outras pessoas que diziam que não se enriqueceu com o negócio do minério, mas com uma fortuna herdada de um tio de sua mulher que era judeu, não tinha descendentes e viveu em Macedo de Cavaleiros.

O bruxo de Meirinhos – pessoa muito mentirosa – dizia que Dom Baldo encontrou um cordeiro de ouro, em tamanho natural, quando no lugar do Canamor escavava a terra para plantar uma árvore.

Terminava assim a história do Estanqueiro, e começava a história de Dom Baldo.

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo X

Subíamos o monte pela margem direita da ribeira da Vilela. O céu estava limpo, fazia muito calor e não havia vento.

À nossa frente, numa eira, formou-se um polvarinho de pó e de palha. Rapidamente tornou-se tão forte que fez ir pelos ares as telhas do telhado de um moinho entre os que ali havia e depois, enfurecido, fazia círculos à nossa volta. Ao Botelho parecia-lhe que via no redemoinho uma feiticeira em forma de cobra. Seguindo a tradição popular pegou numa peneira e numa garrafa que pediu ao moleiro. Benzeu-se e disse:” credo, 
abrenúncio”. Depois, com aquela peneira e a garrafa meteu-se no meio do redemoinho para prender a feiticeira. O redemoinho desfez-se. Então o Botelho dizia, com ar de satisfação, que tinha agarrado e metido na garrafa a feiticeira e que a tapou com a peneira para esta não fugir. Com curiosidade examinámos a garrafa e a peneira e não vimos qualquer feiticeira. Talvez se tenha escapado.

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo IX

Aproximámo-nos de uma ribeira chamada Vilela, sendo nosso desejo beber da sua água limpa e fresca. Os cágados, que estavam a descansar ao sol sobre as pedras das margens da ribeira, ao darem conta da nossa presença submergiram lentamente na água, onde depois nadavam em círculos, provavelmente por influência dos astros.

Perto dali numa colina havia um colmeal com colmeias de cortiça, cercado por um muro alto de pedra de xisto, de forma circular, com remates em lousa salientes para o exterior, semelhantes aos anéis de Saturno, e uma porta pequena, tudo para proteger as colmeias da acção dos predadores, entre eles os ursos.

As abelhas saíam e regressavam às colmeias, a grande velocidade, num zumbido permanente, carregadas de néctar e de pólen. Depositado o produto nos favos da colmeia comiam, repousavam o suficiente para recuperar as forças e partiam de novo com o mesmo entusiasmo. De vez em quando faziam voos em círculo, de subida e descida acentuados, cuja finalidade só elas sabiam. Seria por puro prazer ou para adquirirem treino para contornar os ataques dos abelharucos, ou os obstáculos que surgiam diariamente. De qualquer modo era um comportamento espectacular.

A uns cem passos dali havia um moinho de água. Via o seu rodízio que girava em torno de si próprio com a força da água e lançava-a com ruído em todas as direcções. 

O moleiro, chamado Gabriel, natural de Fornos, acabava de chegar com duas cargas de trigo.

Resolvi parar um pouco.

O meu cavalo e o jumento do Botelho, esfomeados, comiam a erva fresca das margens da ribeira.

Sentei-me à sombra de um olmo perto de uma laranjeira com laranjas maduras. Chamei pelo Botelho para trazer os alforges a fim de ali comermos as provisões que tínhamos. Uma pedra servia de mesa e duas outras de bancos. Com a comida bebemos um vinho tinto produzido na região da Vilariça. Era de tão alta qualidade que depois de o beber via as serras andarem à nossa volta, a ribeira a correr em sentido contrário, o moinho inclinado quase a cair em cima do moleiro e o colmeal e a cerca no ar a girarem à volta de si próprios quase em cima de nós. Passados uns instantes já tinha dúvidas se era o colmeal que girava quase em cima de nós ou se era a lua cheia. Só o vinho não poderia gerar uma situação tão fantástica. Talvez fosse qualquer interferência da luz do altar romano ou de algum espírito da necrópole de São Cristóvão.

Deitei-me na erva e logo adormeci. Tive um sonho surpreendente.

Encontrei-me no outro mundo tal como sou, vivo, sem saber como lá cheguei.

Então estava sentado à sombra fresca de uma árvore com uma copa de folhas azuis e frutos perfumados e de boa pinta, muito parecidos com as laranjas de Mazouco. A copa da árvore fez-me recordar a abóbada da Igreja de Carviçais.

Tinha alguma fome e apetecia-me comer aqueles frutos. Porém, não toquei em nenhum, porque tive a premonição de que não era permitido a ninguém comê-los sem merecê-los. Eu merecia comê-los? Não sabia. Tinha dúvidas. Pior do que isso, a serpente maldita poderia ter-se transformado naqueles frutos.

Entretanto começou a chover. Não tinha capote. Pensei que ia molhar-me. Surpreendentemente as folhas da árvore beberam toda a chuva, sem cair uma gota sobre mim, nem sobre o solo. Ou seria uma chuva que pela sua natureza não molha, nesse aspecto muito diferente daquela que caía na terra.

A luz que surgiu era tão clara e afectuosa que eu já não necessitava de mais nada. Então, ou me esqueci da fome ou me passou. Talvez me tenha passado, porque quando estamos felizes quase não necessitamos de comer e de beber.

Tudo isto me pareceu fantástico em comparação com aquilo que se passava e ainda se passa na Terra.

À minha frente passava um rio que levava água abundante, a qual era mais pura que aquela que nasce na fonte Castalia em Monte Parnasso, onde se purificavam e creio que ainda se purificam as ninfas antes de se acercarem de Apolo para tocarem canções.

Pus-me a observar um cenário belíssimo que se encontrava naquele rio, na margem contrária àquela em que eu me encontrava.

Um homem que tinha aspecto de santo estava sentado num trono dourado, fazendo de juiz (ou era juiz de profissão). Segurava numa das suas mãos uma balança de dois pratos e na outra uma espada. À sua frente estava um livro aberto. Donde me encontrava não podia ler o que estava lá escrito. Apesar disso, acreditei que ali estivessem escritas as leis do céu ou pelo menos as de Moisés.

Pelo rio de que falei iam uns barcos à vela carregados de gente em direcção àquele trono, devagar, porque o vento era pouco. Os barcos eram parecidos com aqueles que navegavam no rio Douro no lugar da Congida.

As pessoas acercavam-se do trono. Esperavam que o juiz as chamasse, umas sentadas e outras de pé, porque as cadeiras não eram suficientes para todas. Algumas delas tinham os rostos tranquilos e outras mostravam-se apavoradas. Daquelas pessoas só conhecia uma, o Horácio de Mazouco.

Acordei bruscamente com os gritos de um homem e o ladrar de um cão que vinham dos lados do moinho. Era o moleiro que se queixava do meu cavalo e do jumento do Botelho, porque lhe tinham comido umas verduras na sua horta e duas quartas de cereal que se encontravam em frente do moinho. Com um pau e a ajuda de um cão afugentava os nossos animais. O jumento fugia como se não tivesse reumatismo.

Disse-lhe que tínhamos o direito de aboletamento, dada a nossa profissão, coisa que ele não sabia o que era e tive que lhe explicar. Não iríamos utilizar este nosso direito. Prometi-lhe que mais tarde lhe daria três quartas de cereal para pagar os prejuízos. Além disso, faríamos de conta que não sabíamos que o seu cão não tinha licença.

Censurei o Botelho por, em vez de guardar os nossos animais e vigiar os nossos inimigos, ter adormecido. De facto, segundo as regras da nossa profissão, quando o comandante dorme o ajudante deve estar vigilante para todas a eventualidades e, no nosso caso, para a aproximação dos salteadores.


 Respondeu-me que aquele vinho era demasiado forte para beber ao almoço.

Da cumeeira da tia Baldo se fez uma senhora saboneteira

Já desde a altura da demolição que olho para o que restou de madeiras da casa da tia Baldo a tentar perceber como dar-lhes uma nova vida. Sobrou algo dos armários, e sobretudo muita madeira das coberturas. Esta madeira tinha ficado encostada ao contentor durante bastante tempo, e para alindar um pouco mais o exterior da casa (e como os homens do lixo, obviamente, não tocaram na madeira), serrei e arrecadei todas os caibros, cúmeos e tábuas que sobraram.

O recheio da casa nova, comprado quase inteiramente no IKEA, foi sempre visto por mim como algo de transitório. Ponho aqui este mobiliário barato e bonito, e ao longo dos anos vou trocando móveis e acessórios por outros com mais valor, sentimental ou estético.

De muito olhar para as madeiras sobrantes lembrei-me de cortar pedaços dos cúmeos e, aproveitando a madeira boa do seu interior, fazer peças que pudessem tornar a Casa mais atraente para os seus hóspedes.

E assim se fez esta saboneteira, primeira de muitas. A madeira ainda não está bem identificada (o vizinho disse que seria pinho, mas não me parece uma madeira muito utilizada nas cumeeiras). Depois de sacado um pedaço (com uma serra e uma enxó), o trabalho seguinte passou por lixar e escavar (com uma navalha normal e uma faca de fazer colheres, de lâmina curva). Mantive a forma original e as faces queimadas pelo fumo. Fez-se o furo para escoar a água, alteou-se a base (para que a água não empape) com batentes pequenos e, por fim, dei-lhe duas camadas de óleo mineral, (mais uma vez) comprado no IKEA. Et voilá:


(mais fotos no flickr)

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo VIII

Pouco tempo depois chegámos às imediações de uma igreja cristã, cujo santo se chamava Cristóvão, o qual protegia as pessoas em viagem, quer durante a vida, quer depois da morte. A povoação que ficava ao seu lado também tinha o mesmo nome.

Subimos as escadas de um grande rochedo, talhadas na pedra, para entrarmos naquela igreja, visitar o seu santo e pedir-lhe protecção. O santo concedia aquela protecção, não a toda a gente, mas apenas às pessoas que de facto se arrependessem das suas más acções. Não bastava dizer que estavam arrependidas. O santo averiguava a autenticidade do que diziam, porque tinha acesso directo ao seu pensamento. Certamente que nunca daria a sua protecção aos viajantes salteadores das estradas que não quisessem mudar de vida.

Encontrámos as portas da igreja fechadas, mas pudemos ver o seu interior através de umas janelas com grades de ferro, destinadas a permitir às pessoas em viagem que pudessem ver e falar com o santo a qualquer hora do dia, dado que ali passava muita gente. O santo, durante o dia, estava sempre disponível para receber as pessoas.

Na parede da igreja estava pintada a figura daquele santo, em cima de um rochedo, com uma barca de cada lado. A barca maior transportaria as pessoas vivas e a mais pequena as almas, dada a magreza das figuras humanas que estavam dentro dela e sua aparente leveza. Ao leme das barcas via-se uma figura brilhante parecida com o São Cristóvão, ou seria ele mesmo. 

Porém, a ribeira que circundava o templo nunca teve água suficiente para nela navegarem barcas, salvo em raras ocasiões de trovoadas com chuvas abundantes.

Talvez as barcas simbolizassem as viagens humanas, os caminhos e as estradas, fossem as pessoas a pé, a cavalo, de barco, através das nuvens ou de qualquer outro meio de transporte.

Detive-me a observar outra pintura no tecto da igreja, sobre o firmamento, tal como se encontra descrito no Livro do Génesis. A pintura estava tão bem feita que me pareceu por momentos que estava a ver o céu natural, salvo umas pequenas diferenças, das quais já não me recordo bem. 

No centro do firmamento encontrava-se a Terra e à sua volta as estrelas e os astros. A Terra era maior do que as estrelas e os outros astros.

Descíamos as escadas do rochedo, pela parte da frente da igreja, quando o meu ajudante caiu em cima delas, ficando ferido pelo menos nas costelas. Então queixava-se, ai, ai… e suplicava valha-me Deus. No meio deste triste episódio lembrou-se de que não tínhamos feito o pedido de protecção ao santo. Propus que o pedido se fizesse ali mesmo, pois o espírito do santo estava em todo o lado. Mas ele, pessoa entendida no assunto por ter frequentado o seminário durante alguns anos, do qual só saiu por ter que cuidar dos irmãos por morte do pai de todos eles, explicou que o pedido feito nas escadas não tinha tanto valor como aquele que era feito à janela da igreja se esta estivesse fechada ou dentro dela se estivesse aberta. A observação tinha razão de ser. De facto, atendendo à preguiça que reina no ser humano, desde o tempo de Adão e Eva, que quiseram comer o fruto da árvore que não plantaram, se os pedidos feitos nas escadas valessem o mesmo daqueles que eram feitos junto às janelas do templo, quando estivesse fechado ou no seu interior, quando estivesse aberto, então as pessoas evitariam subir as escadas. Além disso, o ser humano gosta de receber muito e de dar pouco ou nada. Seja como for, não visitar o santo estando perto dele, seria para ele uma desconsideração.

Cumprida a nossa obrigação junto do santo e depois de descer as escadas do rochedo, já nos dirigíamos ao lugar onde se encontravam os nosso animais e então, virando-me para a fachada da igreja para me despedir do santo, reparei que do lado direito dela existia um caminho junto a uma necrópole e do seu lado esquerdo um caminho junto a uma povoação com muitos habitantes. Isto surpreendeu-me. Relacionei estes caminhos com as barcas. O da povoação representaria a viagem dos vivos e o da necrópole representaria a viagem das almas.

As sepulturas escavadas na rocha alinhavam-se em forma de barca. Algumas tinham uma cobertura apropriada e outras estavam a descoberto. Talvez estas tenham sido violadas por ladrões de tesouros. De facto, naquela povoação os familiares dos defuntos depositavam nos seus túmulos comida para a viagem daqueles e alguns artefactos, se possível em ouro, para os usarem no outro mundo, caso fosse permitido ou pelo menos para se apresentarem.

Havia também sepulturas escavadas na terra, com coberturas de lajes de xisto, algumas removidas, porventura por ladrões. Em muitas coberturas estavam gravados os nomes dos defuntos. Um dos nomes tinha o meu apelido. Fiquei muito emocionado, por pensar que seria o apelido de um meu antepassado. Aliás, já alguém me havia dito que antepassados meus viveram na povoação de São Cristóvão. Isto emocionou-me profundamente. Curvei-me em frente daquele túmulo em homenagem à pessoa que ali foi enterrada. O meu ajudante fez o mesmo, talvez para agradar ao seu comandante, cargo que muito gostaria de ocupar.

Desde tempos remotos viveu ali gente e quis deixar gravado na rocha o seu modo particular de viver e transmiti-lo às gerações futuras. Sem aquelas rochas escavadas, sem as inscrições nas coberturas das sepulturas, sem os artefactos colocados nos túmulos e sem a igreja, provavelmente nem saberíamos que aquele lugar foi povoado tão remotamente.

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo VII

No dia seguinte, saímos da povoação de Carviçais antes do amanhecer. Já íamos longe quando tocou o sino da sua igreja, para a missa ou para um baptizado. O sol abriu as suas portas e então pude ver ao longe, entre as montanhas e o céu, a Quinta do Fidalgo de Martim Tirado, a qual distava dali umas cinco léguas, seguindo pelo caminho do Canamor. Tive que esperar um pouco porque o meu ajudante se atrasou. 

Entretanto pus-me a observar aquelas montanhas, parecendo-me que estavam pintadas. Eram uma coisa admirável. Porém, o Botelho explicou-me que não estavam pintadas, mas cobertas de um manto multicolor de arbustos e árvores, sobretudo rosmaninho, giesta, esteva, pinheiros, castanheiros, amendoeiras, oliveiras e cereal. 

Os pássaros, com os mais variados chilreios, saudavam a chegada do sol e os insectos zumbiam em coro por todo o lado, lançando-se sobre as flores para recolherem o seu néctar.

Tomámos o caminho do Canamor e pouco depois penetrámos num bosque de sobreiros, onde vimos algumas pessoas conhecidas do Botelho a tirar a cortiça daquelas árvores, que naquele sítio serviam para fazer colmeias e barcos para transportar sonhos.

Continuando a nossa viagem avistámos perto de nós, numa colina, as ruínas de uma vila romana. Fiquei assombrado com uma luz azul que as ligava, em arco, à copa dos sobreiros da mata que acabávamos de atravessar. A cor azul da luz misturada com a cor verde dos sobreiros criava uma cor verde-clara cujo matiz não era conhecido na natureza. Nunca tinha visto nem ouvido falar de coisa semelhante. O Botelho primeiro dizia que não via nada, talvez por estar virado de frente para o sol. Persignou-se e mudou de direcção. Então exclamou maravilhado que aquilo era um milagre ou uma coisa extraordinária do outro mundo. Louvado seja Deus! Não se ficou a saber se o Botelho passou a ver o que não via antes por ter mudado de direcção ou por se ter persignado. Talvez estivesse em pecado e ao persignar-se terá expulsado o demónio, bruxedo ou coisa parecida que o impedia de ver. Poderia estar a ver coisa diferente do que eu via por se ter persignado. 

Tinha dúvidas sobre se o arco da luz partia das ruínas romanas em direcção aos sobreiros, ou se partia destes em relação àquelas. Aproximámo-nos das ruínas e então pudemos ver que a luz partia de um altar romano, que estava no cruzamento de caminhos. Tudo indicava que a luz provinha do interior da rocha do altar. A ser assim estávamos a assistir a um milagre. Além disso, até então ninguém tinha falado naquela luz. Aproximámo-nos mais e então eram visíveis uns veios azuis na pedra. 

Poderia a luz azul ser o reflexo daqueles veios e não vir do seu interior. Não constava que até então alguém tivesse visto aquela luz. O Botelho explicou que aquele altar tinha sido desenterrado uns dias antes, e que estaria muito sujo da terra que o cobria. No dia em que ali chegámos choveu muito, a chuva terá limpado o altar e então passou a brilhar. Mudámos o altar numa direcção em que não recebia directamente os raios do sol. A luz azul continuava a sair do altar mas um pouco menos intensa. Poderia receber a luz solar indirectamente, que era muito intensa, naquele sítio. Poderia ser também o espírito de um ou vários romanos que, tendo fugido do inferno ou do purgatório, vagueavam pelo mundo. 

Nisto vimos uma mulher velha de luto a aproximar-se de nós com uma vassoura na mão. O Botelho, dado o seu carácter impetuoso e a ambição de ganhar fama, em vez de falar com a mulher, logo considerou que ela era uma bruxa perigosa, pegou na lança e foi na sua direcção com o objectivo de a agredir ou trespassar se necessário. A mulher ou bruxa, ao aperceber-se das intenções daquele, logo desatou a correr e desapareceu de forma misteriosa atrás de uns penhascos. Teria razão o Botelho ao considerá-la bruxa? Se fosse bruxa teria usado a vassoura para voar e não o fez. Talvez não o tenha podido fazer porque o Botelho usava na lança um crucifixo benzido pelo bispo de Vila Real. 

Com boas intenções admiti mais tarde como possível que a vassoura que a mulher trazia fosse de giesta que ali colheu e a levasse para varrer a sua casa. Ou talvez fosse devota do culto romano e fosse ali para comunicar com os seus antepassados. 

Entretanto um corvo pousou nos sobreiros que recebiam a luz do altar romano, o qual dizia coisas que não se percebiam bem. Fiquei com a ideia de que eram insultos dirigidos ao Botelho. Talvez fosse a mulher que anteriormente perseguiu com a lança e se tenha transformado em corvo. Via-se no rosto do Botelho que estava amedrontado com os previsíveis poderes do corvo. Ficámos sem saber o que se passou. Só os sacerdotes poderão desvendar o mistério.

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo VI

Ao final da tarde chegámos a Carviçais. Da feira que naquele dia ali se realizava já restava pouco. Os nossos animais contornaram a igreja para ao fundo desta beberem no tanque de uma nascente. Tivemos que aguardar em fila que as pessoas que estavam à nossa frente se abastecessem daquela água, num tanque reservado para elas, e se refrescassem molhando a testa com a água que elevavam nas conchas das mãos. Fiz o mesmo, e esta experiência deu bom resultado. Além de me refrescar, a água tirou-me as dores de cabeça. Aquela fonte era famosa por causa desta particularidade. As pessoas consideravam aquela água benta por passar debaixo da igreja. Além disso, para reforçar os seus poderes curativos e purificadores, também era benzida pelo padre, de sete em sete dias. Eu sabia que a água benta se deitava na cabeça das crianças para as purificar na cerimónia do baptismo, mas não sabia que também se podia beber. Também não tinha conhecimento de que ela tivesse feito mal a quem porventura a tivesse bebido por descuido ou intencionalmente. É certo que se dizia que presunção e água benta cada um podia tomar a que quisesse. Porém, aqui a palavra tomar não era entendida no sentido de a beber ou de alguém se purificar, mas pelo contrário, de alguém querer fazer crer que valia muito quando na realidade valia pouco ou quase nada.

Chamavam-lhe a Fonte Santa de Carviçais, para a distinguir de outra que existia no município de Mogadouro. Nisto sucedeu uma coisa surpreendente: depois de o jumento beber daquela água, o seu olho amarelo transformou-se em olho normal, facto que foi presenciado por bastantes pessoas. Toda a gente ficou assombrada com o que viu e com medo de que alguma coisa estranha lhes pudesse acontecer. Olhavam com pavor umas para as outras para verem se a vista de alguma delas tinha virado amarela. Entretanto o padre, que ia da sua residência para a igreja, depois de ouvir contar o sucedido, admitiu que no olho amarelo do jumento estivesse metida uma feiticeira ou o espírito desta. Terá fugido devido à água que o jumento bebeu ser benta, ou devido à sua aproximação. 

Marcámos dormida na hospedaria da praça e metemos os nossos animais na cavalariça. Ali, de modo discreto, pedimos informações sobre se havia notícia dos salteadores.

Por devoção entrámos na igreja pela porta principal, virada para poente, estando já a decorrer a missa. O padre fez uma longa homilia sobre um monge pintor e guerreiro do castelo da Cigadonha, cujo enterro se realizou naquele dia. Foi ele quem pintara o tecto da igreja onde nos encontrávamos, dando especial importância a um monte com sete patamares em círculo que significava o Purgatório. Um deles ficou inacabado. 

As pessoas subiam os patamares carregando fardos às costas, não se sabendo o que tinham dentro. À medida que subiam, os fardos diminuíam de tamanho. Chamou-me a atenção a existência de diversas árvores com frutos parecidos com as laranjas, maçãs e as uvas, nas colunas do altar. Talvez aquela fruta fosse para oferecer às pessoas como prémio do sacrifício que fizeram para chegarem ao cimo do monte e para prosseguirem a sua viagem.

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo V

Quando subíamos a encosta do Monte da Mua ou da Mula, observámos um espectáculo surpreendente: o sol atravessava aquela montanha através de uma mina, o que sucedia todos os anos no início do Verão. Era uma coisa impressionante! A luz quando entrava na mina era branca e quando saía tinha cores e matizes variadas. Ninguém sabia ao certo por que razão tal acontecia. De qualquer modo naquele dia ninguém se aproximava da mina com receio de lá ficar preso por encantamento. 

No mesmo monte havia outras minas em vários patamares. Estes começavam por um caminho na base da montanha que a circundava sete vezes até atingir o seu cume. Nos patamares movimentavam-se pessoas com sacos de minério às costas. 

A meio da tarde, quando nos aproximávamos da povoação de Vale de Ferreiros, uma chuva de relâmpagos lançava-se contra as encostas daquele monte, acompanhada de trovões. Porém, o monte ficava igual, não se percebendo para que servia aquela fúria e tanta pressa. Partiam de uma nuvem escura pousada no cimo do monte da Mua. 

Os seres humanos e os animais amedrontavam-se com o relampejar e o trovejar, especialmente quando eram tão frequentes. Um rapaz tocava o sino da igreja daquela povoação e um padre lia passagens da Bíblia. Havia a crença de que estas práticas tornavam as trovoadas mais ligeiras e breves. 

A chuva começou a cair com gotas grossas e depois em forma de granizo. Abrigámo-nos na primeira oficina de ferreiros que encontrámos. Estes tinham coroas de louro na cabeça e suspenderam o trabalho até a trovoada passar. O Botelho pediu-lhes coroas de louro para nós e para os nossos animais. Esta prática baseava-se na experiência popular, segundo a qual os raios caíam muitas vezes nas árvores de várias espécies, mas nunca atingiam os loureiros. Se os loureiros estavam imunes aos raios, seria suficiente usar alguns ramos deles na cabeça para os afastar. Os ramos assumiam a forma de coroas para se segurarem na cabeça. 

Acreditava-se que o diabo levou para o pico do monte da Mula os melhores ferreiros que havia em Vale de Ferreiros para fabricarem raios. O diabo queria castigar os seres humanos que lhe desobedeciam lançando raios contra eles. Por isso os seres humanos, querendo retaliar ao diabo, diziam: raios o partam ou raios partam o diabo. Mas dizê-lo pouco ou nada valia, porque os raios não se viravam contra ele. 

Provavelmente alguns dos homens que se movimentavam nos patamares do monte da Mula com sacos às costas transportavam minério para a oficina do diabo para aí os ferreiros fabricarem os raios. Quiçá os raios que caíam perto de nós não seriam uma maldição, mas apenas faíscas lançadas pelo bater dos poderosos martelos dos ferreiros no ferro a altas temperaturas para fabricar os raios que o diabo queria espalhar por todo o universo. Os trovões seriam o som do bater dos martelos que ecoava repetidas vezes nos montes e o que parecia ser uma nuvem escura seria o fumo das forjas.

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo IV

Continuámos a nossa viagem por um vale estreito, num espantoso silêncio, donde se avistava a povoação do Felgar a meio da encosta do nosso lado direito. Era um povoado com as casas caiadas de branco, cercado por olarias e com uma igreja no seu ponto mais alto. As ruas estavam quase desertas àquela hora. Uma mulher vestida de luto encontrava-se no adro da igreja, com as mãos pousadas em cima do lenço da cabeça, aparentemente a observar a povoação ou a meditar sobre o transcendente. Não esteve ali muito tempo. Pegou no cesto que estava no chão, com uma lebre, pô-lo à cabeça em cima de uma rodilha e juntou-se a uma caravana de cavalos que transportava cântaros de barro para vender na feira de Moncorvo.

Pouco depois parei num cruzamento à espera do Botelho para lhe perguntar que direcção devíamos tomar, pois ele conhecia melhor aqueles caminhos. Antes de o ouvir, o meu cavalo impetuosamente tomou o caminho que dava para o cemitério, ao lado da igreja, o que não era do meu agrado, porque durante a lua cheia, ali poderiam aparecer espíritos, fantasmas, almas penadas ou pessoas perdidas que fugiram do outro mundo. Do cemitério saíam lentamente fios finos de fogo, os quais paravam no ar e depois apagavam-se. Ouvia-se ou parecia-me que se ouvia um ruído semelhante ao do arrastar de lajes, que vinha dos lados do cemitério. Provavelmente era o ruído das coberturas das sepulturas que estavam a ser abertas pelos seus ocupantes.

Seguiu-se o piar de uma coruja. Olhando em redor nada se via, nem se sabia donde vinha aquela música melancólica que nos causava arrepios de medo. O piar da coruja pronunciava mau augúrio, mas quando tal acontecia junto dos cemitérios estava ligado ao anúncio próximo da morte de alguém, ou que alguma alma penada vagueava por ali.

Enquanto isto sucedia, surgiram dois vultos à nossa retaguarda, do tamanho de pessoas. Mais adiante, em campo descoberto, vimos claramente que tinham o corpo de homens e a cabeça de lobos. Havia a crença popular de que comiam carne humana.

Puseram-se um ao lado do outro, virados na nossa direcção, uivavam como lobos, escavavam com as patas da frente no chão, levantavam o pelo, abriam a boca ao máximo e mostravam os dentes afiados para com a maior fúria e velocidade se atirarem contra nós e contra os nossos animais. Criaram um ambiente de terror. O meu ajudante, profissional experiente nestas batalhas, sabia que o relampejo da prata os afugentava.

Por isso, quando se lançaram contra nós, o Botelho aproximou o crucifixo de prata (que usava na lança) do olho luminoso do jumento e a luz reflectida logo os afastou. Então procuraram atacar-nos pela retaguarda. Para os podermos atacar de frente era necessário que os nossos animais estivessem treinados para rodar rapidamente sobre si mesmos, mas não estavam. Assim, o jumento, devido ao reumatismo de que padecia e à falta de treino, ao iniciar tal manobra logo caiu ao chão com grande estrondo, acontecimento que perturbou os lobisomens e os fez recuar. Embora estivesse vivo, ali permaneceu sem procurar levantar-se nem sequer pestanejar. Na altura não se sabia, nem houve tempo para se saber, se tal comportamento se deveu a uma impossibilidade de se levantar ou se quis permanecer deitado devido à preguiça que reinava e ainda reina nestes animais, ou se quis fingir que estava morto para que o deixassem em paz, de acordo com a sua natureza pacífica. De qualquer modo não reza a história que com a colaboração destes animais se tenha ganho qualquer batalha.

Então o Botelho quis resolver o problema sozinho, tendo em conta a sua formação em infantaria. Enfrentou os lobisomens levantando a lança para os atingir de tal modo que os pudesse cortar ao meio. Porém, os lobisomens, apercebendo-se do perigo que corriam naquela situação desvantajosa para eles, não esperaram pelo pior, fugiram e pararam à distância, em cima de um rochedo. Entretanto nasceu um novo dia, e com o aparecimento do sol os lobisomens voltaram à forma humana, e o jumento, já livre de perigo, levantou-se como se nada lhe tivesse acontecido.

Estava certo o saber popular: havia homens que durante a lua cheia se transformavam em lobisomens e quando esta acabava, ao nascer do sol, regressavam à configuração humana. Se essas pessoas se transformavam em lobisomens por vontade própria ou por uma maldição, não se sabia. De qualquer modo, quando se desconfiava que determinada pessoa fosse lobisomem, os populares, amedrontados, com o pretexto de que seria possuído pelo demónio, expulsavam-no da sua povoação. Para não serem descobertos, escondiam-se durante o dia e atacavam as pessoas durante a noite.

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo III

Entre a povoação do Carvalhal e as minas com o mesmo nome, imergimos numa densa floresta de carvalhos, castanheiros, pinheiros e aveleiras, na qual entrava pouca luz do luar - por isso ia à frente o jumento para assinalar o caminho, dadas as suas excepcionais capacidades de visão nocturna. Nisto, avistámos ao longe uns vultos de pessoas a cavalo, que vinham na nossa direcção, com tochas acesas. Vestiam capas negras e usavam chapéus de abas largas da mesma cor. Parecia que traziam uma arca ou um caixão no dorso de um cavalo, preso com cordas entre dois feixes de palha. Se fosse uma arca poderiam trazer lá dentro, entre outras coisas, um tesouro ou roupas finas de linho ou de seda. Ou então viria sem nada. Se fosse um caixão poderia estar vazio ou trazer um defunto para enterrar no cemitério do Felgar. Pararam mal nos viram e depois dois cavaleiros daquele grupo aproximaram-se de nós, ficando a cerca de cem passos de distância a olhar-nos. Então um deles deu ordem de retirada e afastaram-se numa cavalgada infernal. Não ficámos a saber se eles eram monges ou os salteadores da estrada que procurávamos ou se eram pessoas comuns, pacíficas, que pensavam que os salteadores éramos nós.

Porventura, ter-se-ão assustado com a luz amarela do olho do jumento, supondo que se tratava de um lobisomem. Tal suposição é admissível. De facto, segundo a sabedoria popular, uma pessoa que se deitasse num cruzamento de caminhos onde se espojou um burro durante as noites de lua cheia podia transformar-se num ser humano com cabeça semelhante à daquele animal. Por outro lado, a postura do jumento também os pode ter assustado: ao vê-los, por uma questão de vaidade ou numa atitude de defesa arregalou os olhos, levantou o pescoço, inclinou as orelhas para a frente, pôs os dentes a descoberto, abriu a boca ao máximo e zurrava Hi-Hó… 

Apesar da dúvida, o Botelho queria investir contra eles, dada a sua valentia, a vontade de se tornar famoso, o sentido exagerado do seu dever profissional, e por ter ouvido dizer, quando andava na tropa, que quem prestasse bons serviços na nossa profissão poderia ser promovido a comandante ou a governador. Aproveitei para lhe dizer que segundo o nosso regulamento, que ele ainda não tinha acabado de ler, em caso de dúvida não se deviam atacar as pessoas. Por isso nada fizemos. De resto, perseguir homens a cavalo com um jumento com reumatismo numa pata não daria bons resultados.

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo II

Percorrida cerca de meia légua o meu cavalo parou, sem se saber porquê. Levantou a cabeça calmamente e com curiosidade observava um agrupamento de sete estrelas que formava uma figura como a de um leão. Isto durou pouco tempo, possivelmente por ter medo dele, e logo passou a observar duas estrelas brancas de maior tamanho e mais brilhantes. Parecia-me que comunicava com elas através de pequenos relinchos e espirros, com o alongar do pescoço para se aproximar mais delas, ao mesmo tempo que escavava o chão com as patas dianteiras. Recebidos os sinais que buscava logo retrocedeu e tomou outro caminho. Então acreditei que a estrela que tinha na testa lhe dava poderes misteriosos, que lhe permitiam comunicar com as estrelas e delas receber orientações que lhe indicassem o caminho a seguir para encontrarmos os salteadores que uns dias antes em Vale de Ferreiros haviam roubado um cavalo e o dinheiro que levava um fidalgo de Martim Tirado.

O nome do fidalgo não se pode saber agora, só se saberá mais adiante, onde terá mais cabimento, quando se falar da sua sorte favorável e das suas qualidades. Continuámos a nossa viagem subindo pela encosta de uma montanha chamada Reboredo, por ter muitos carvalhos. Dos rochedos brotava água abundante, a qual em pequenas quedas amortecidas por rochas arredondadas e por plantas aquáticas produzia uma música agradável, misturada com o som das campainhas das coleiras dos animais Sem darmos conta, chegámos ao seu cume e então vimos a lua atrás dele, como se estivesse ali escondida, dando a impressão de que estava à nossa beira. Cobria-a um manto de tonalidade amarela, um pouco parecido com as searas maduras ou ervas comestíveis dos animais. Teria ocorrido ao jumento do Botelho a ideia de que se desse uns passos em frente poderia comer aquele cereal. Tentou fazê-lo. Porém, o animal embora de inteligência escassa, cedo se apercebeu de que precisaria de percorrer uma grande distância para atingir tão apetecível pastagem. Por isso, com algum desgosto, desistiu e passou a comer uma erva de inferior qualidade que estava à sua frente. Nisto, estando o jumento de lado em relação a mim reparei novamente no seu olho amarelo, então de uma tonalidade parecida com a tonalidade da lua. Porquê esta quase semelhança? Tudo levava a crer que havia uma relação oculta entre o olho do jumento e a lua cheia - pelo menos existia semelhança no facto de ambos iluminarem a terra durante a noite.

Conto de António Júlio Lopes. Publicaremos os próximos capítulos ao longo das próximas semanas.

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo I

De madrugada, antes do amanhecer, saí de Torre de Moncorvo e deixei o meu cavalo seguir o caminho assinalado pelas estrelas. Era um animal raro, de origem oriental, com uma estrela branca na testa. Gostava de viajar de noite, durante o dia, com bom tempo, à chuva e ao vento.

Li alguns livros antigos de astrólogos persas, ou terei sonhado que os li, os quais acreditavam que os cavalos com aquela estrela possuíam poderes ocultos que lhes permitiam comunicar com as estrelas e através delas  
saber qual o caminho mais favorável para os fins de cada viagem.

Estes cavalos extinguiram-se na Pérsia há mais de dois mil anos. Os sacerdotes, por inveja, não gostavam do poder misterioso destes animais. Por isso, reunidos em conselho, amaldiçoaram-nos e perseguiram-nos. Não demorou muito tempo para que começassem a desaparecer. Antes disso alguns deles refugiaram-se no Ocidente, onde se mantém a espécie.

Atrás de mim ia o meu ajudante, chamado Botelho, com um jumento valente, mas um pouco enfermo por causa do reumatismo que lhe atacava uma pata, especialmente durante aquele tempo da lua cheia.

O jumento tinha um olho normal e outro amarelo com uma tonalidade próxima do açafrão, coisa misteriosa, cujo significado ninguém sabia explicar, pois não havia memória de ter sido vista coisa semelhante. Não se tratava de uma doença da vista que lhe diminuísse a visão. Pelo contrário, aquela vista era saudável, maior do que a outra, alongada e brilhante, a qual lhe permitia ver claramente nas noites escuras.

Naquele território, que também abrangia Martim Tirado, havia o céu mais limpo que se conhecia. De noite viam-se com nitidez os astros, as estrelas mais próximas e as mais longínquas, as maiores e as mais pequenas, as isoladas e as agrupadas, as cadentes e as chuvas de estrelas. Nas noites de lua cheia, a cor azul variável do céu, o branco das estrelas mais ou menos brilhantes e o amarelo da lua davam-lhe uma lindeza que só ali se podia encontrar.

Astrólogos de terras distantes viajavam até Moncorvo com a finalidade de subirem à sua Torre e dali observarem as estrelas, os astros e os seus movimentos regulares e fazerem estudos e medições. Nas pedras do castelo deixaram escritas algumas observações realizadas e gravuras das mesmas.

Também os adivinhos daquele sítio e outros que vinham de longe subiam à Torre para observarem o voo dos corvos que ali habitavam, para ouvirem o seu canto e depois predizerem o futuro sobre assuntos importantes.

Conto de António Júlio Lopes. Publicaremos os próximos capítulos ao longo das próximas semanas.