Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo XIII

Já perto do cimo do monte avistámos à distância uma povoação com muitas casas do mesmo estilo, dispostas em círculo, como uma espécie de observatório astronómico e, no meio delas, erguia-se uma torre também circular e um palácio.

No cimo da torre via-se um grupo de pessoas, cada uma com um saco ao ombro com todos os seus haveres. Creio que esperavam por uma nuvem que se aproximava. Então ergueram uma escada para subirem para ela. A nuvem, admitindo que adivinhou o desejo delas, transportá-los-ia seguindo o caminho do sol e do vento, ou quereriam elas que as levasse para a eternidade, ou teriam apenas um sonho de viajar nas nuvens. As velas acesas na torre iluminariam a viagem ou serviriam apenas para manter vivo um sonho, uma fantasia, de viajar não se sabe ao certo para onde.

Entrámos na povoação para a visitar. As casas, construídas em pedra de xisto, tinham as paredes arredondadas, e os tectos a forma de cone como as chaminés dos vulcões extintos que se encontravam à sua volta. As casas, a torre, o palácio e o meio circundante harmonizavam-se. As pessoas respeitavam a natureza e gostavam de viver ali. Impressionou-me a cor das pedras das casas: um azul claro semelhante ao azul do céu limpo. Lembrei-me de ouvir dizer a um sábio que em tempos muito recuados o tecto de qualquer homem era o céu em qualquer lugar onde estivesse. Só depois construiu as casas de pedra, os castelos e os palácios. Perdeu a liberdade de viajar. Ter-se-á arrependido. 

No cimo, os tectos das casas tinham uma faixa circular de cor branca. O mesmo sucedia na primavera aos montes quando tinham nuvens ou neve nos cumes. O cimo dos tectos seria construído em pedra branca, estaria pintado de branco ou seria uma nuvem que ali adormeceu ou ali quis apenas repousar.

À volta das casas havia plantas e ervas aromáticas floridas e ao longe viam-se campos cobertos de trigo e de centeio. As diversas cores e formas das flores levavam-me a supor que havia um concurso de beleza entre elas ou um concurso para atraírem os insectos mais simpáticos. Miraculosamente iam mudando os matizes das cores, conforme a espécie dos insectos que se aproximavam. Parecia que existia uma especial estima entre as flores e os insectos que as visitavam, traduzida numa admirável delicadeza recíproca.

Algumas daquelas plantas trepavam pelas paredes das casas e davam flores elegantes que caíam no chão das ruas, formando tapetes perfumados. Talvez quisessem agradar aos habitantes para não as cortarem ou procederiam assim desinteressadamente.

Das ervas aromáticas faziam-se chás, simples ou com diversas ervas misturadas. Elas curavam ou supunha-se que curavam algumas doenças das pessoas, ou aliviavam as suas dores e davam-lhe boa aparência física e bom estado de espírito.

Alguns habitantes vestiam trajes típicos, de tecido fino de cor clara, sobretudo branco, bordados com fio vermelho ou cor-de-rosa, e usavam chapéus com a forma das cúpulas das casas, e eram altos, elegantes, simpáticos, e pareciam felizes. Estes trajes usavam-nos especialmente aos domingos ou em dias de festa.

Entrámos numa casa a convite dos seus habitantes. O chão era feito de barro batido, de cor viva, dividido em rectângulos com divisórias de madeira. Para dar maior consistência ao barro misturavam-lhe palha de centeio. A casa tinha uma divisória ao meio, em madeira. Uma parte servia de cozinha e de sala e a outra, com duas divisórias, para dormitório. A luz do sol entrava sobretudo pela abertura do tecto. A luz suave e abundante dava-me uma especial satisfação e afastava as minhas preocupações. Gostaria de viver ali. A temperatura no interior era agradável: o ar entrava pelo postigo da porta e saía pela chaminé, renovando-se constantemente. Na divisória da cozinha viam-se umas pedras no chão onde se acendia o lume para cozinhar, buracos nas paredes, que serviam para guardar diversas coisas, um escano, um armário com cantareira, várias talhas de barro e uma tulha para guardar o cereal.

Ofereceram-nos para comer pão e queijo de ovelha curado e para beber uma cântara de água. O Botelho, depois de muito gabar a comida, bebeu da água da cântara.

Não demorou a ficar enjoado, com a cara vermelha, mais magro e alto e o nariz comprido. Dizia que ouvia pessoas a falar, sem que elas estivessem presentes. Seguiram-se dores pelo corpo todo.

A mulher explicou que ele bebeu não água mas um xarope destinado a impedir o sangramento excessivo das mulheres depois do parto. Era um xarope leve quando o fez, mas com o passar do tempo parte da água sumiu-se e tornou-se mais forte. Tinha-o guardado num buraco da parede, foi verificar o seu estado e por descuido deixou-o em cima da mesa das refeições. 

Não quis dizer quais os ingredientes que usava para o fazer. Por acaso vi num buraco da parede uma malga com cravagem de centeio, também conhecida pelo nome cornelhos, e fiquei convencido de que os utilizava para fabricar aquele xarope.

Entretanto agravaram-se as dores. A mulher foi ao armário buscar outro xarope, este feito pelos monges da Cigadonha, para acalmar as dores. O Botelho bebeu dois ou três goles dele e sem grandes demoras tornou-se muito bem-disposto.

Surpreendentemente este xarope entrou em guerra com os seus intestinos e por isso saiu rapidamente de casa, saltou por cima dos muros, em direcção a um bosque.

Mais tarde soubemos que os donos da casa para a qual nos convidaram a entrar e a comer eram familiares dos salteadores que nós procurávamos. Ter-nos-ão dado o xarope para nos impedir de prosseguirmos a nossa viagem.

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo XII

Em dia de tanto calor despertou-nos a atenção o murmúrio da água de uma fonte. Não a víamos, talvez devido a umas árvores que se encontravam à nossa frente ou a algum penedo. No cruzamento os nossos animais, por sua iniciativa, viraram na sua direcção. Era a fonte dos Couços, famosa pela pureza e frescura da sua água, tal como a da Fonte da Saúde.

Nisto ouviu-se uma pessoa a cantar. O canto era alegre e suave. Surpreendeu-nos não podermos saber donde vinha a voz, talvez devido ao eco repetido que fazia no vale. Enquanto falávamos no assunto, vimos que uns ramos de uma figueira se mexiam, sem que houvesse vento ou que se visse qualquer pessoa que os fizesse mexer. A situação era estranha. Por precaução empunhámos as nossas armas. O Botelho gritou: apresente-se o cantor ou o fantasma. Então saiu de trás de um muro um rapaz conhecido do Botelho que andava ali com um cesto a colher figos e uvas. Nesse momento deixou de se ouvir cantar e os ramos da figueira já não mexiam. Seria ele quem anteriormente cantava e mexia nos ramos da figueira.

Entretanto chegaram várias pessoas à fonte, para dar de beber aos animais e transportar água. No dorso dos animais traziam uns cestos de vime com cântaros de barro. As mulheres usavam lenços na cabeça, as mais novas de cores variadas e as mais velhas de cor preta, segundo a tradição.

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo XI

Continuando a viagem íamos ambos calados. Só se ouvia o tropel dos nossos animais, o seu espirrar intermitente para afastar as moscas, o ruído das quedas de água e o incómodo cantar das cigarras, situação que era muito aborrecida para mim. Então pedi ao Botelho, que era natural de Martim Tirado, para falar da história do Fidalgo e da sua Quinta.

Segundo o meu ajudante, Dom Baldo, antes de ser Fidalgo, era conhecido pelo apelido de Estanqueiro, o qual vinha da sua antiga família da povoação de Mós. Levantava-se cedo, logo depois do cantar do galo na capoeira, e ainda de noite rumava para os campos que cultivava com dois jumentos, cuja preocupação era fazerem o menos possível. O Estanqueiro contrariava a sua preguiça com umas ligeiras chibatadas. Não os queria molestar muito pois sabia que aqueles animais tinham pouca força, não nasceram para trabalhar e queria evitar remorsos de agredir animais tão mansos. Mesmo assim com eles cultivava os cereais necessários para o seu consumo, depois de guardar as sementes para o ano seguinte, de pagar as avenças ao barbeiro, ao ferrador e as maquias ao moleiro. Além disso, na segunda parte do dia guardava um pequeno rebanho de ovelhas e com dois galgos caçava coelhos e lebres e de vez em quando um pequeno javali. Colhia uns cestos de uvas, das quais guardava algumas para passar e restantes pisava-as num tanque de granito, cujo vinho dava para encher umas duas ou três talhas de barro. O vinho era bom devido à qualidade das uvas e ao modo como o fazia. O segredo de o fazer assim guardava-o só para ele.

A sua principal distracção, especialmente quando guardava o rebanho, era tocar flauta que ele próprio fez de um ramo de sabugueiro. Inventava as músicas que tocava, inspirado no canto das aves, das cigarras, no soprar do vento, nas quedas de água, no cair da chuva e no uivar dos lobos. Não se saía nada mal. Havia mesmo quem o gabasse de tanto jeito para a música. De qualquer modo convidavam-no para tocar em festas e ele aceitava.

Perto da casa dele havia uma quinta com terrenos férteis e muita água, e um palácio de uma torre. Pertencia a um mouro, que desapareceu dali havia muito tempo em circunstâncias misteriosas. Talvez tivesse ido ao Norte de África visitar a família, como era seu costume, e tivesse ficado por lá, vivo ou morto. Constava que a quinta estava encantada por uma moura que a guardava. Ninguém ousava entrar ali, com receio de que alguma coisa trágica pudesse acontecer.

Para espanto e admiração de todos, o Estanqueiro anunciou que tinha comprado aquela quinta, sem explicar a quem a comprou, por que preço e onde foi buscar o dinheiro. Não a ocupou logo. Uns dias depois do anúncio da compra, apareceu ali com o bruxo da Torre D. Chama, que era o mais poderoso de toda a região, e com três ajudantes, também bruxos. Tanto procuraram que encontraram a fonte da quinta onde morava a moura que encantava a quinta, e negociaram com ela. Esta permitia que Dom Baldo entrasse na quinta com a condição de a deixar morar no palácio ou na torre.

Firmado o contrato com a moura, o Estanqueiro aproveitou a proximidade da Feira dos Gorazes, que se realizava todos os anos em Mogadouro, para aí trocar os seus jumentos por dois cavalos, dos mais caros, pagando logo a diferença em dinheiro. Aí comprou também a pronto pagamento dois rebanhos de ovelhas. Um indivíduo da Macieirinha, que antes morara nas Peladinhas, conhecido por Quim, assistiu ao negócio.

Contratou pessoal suficiente para cultivar a quinta e para reparar o palácio e a torre, o qual em tamanho e qualidade era o melhor das redondezas. Para recuperar a torre e o palácio chamou mestres de obra famosos.

Passou a vestir-se como um nobre. Mudou também o seu apelido de Estanqueiro para Baldo. Este apelido era usado pelo Conde de Vimioso.

Então as pessoas do seu povo e dos povos vizinhos passaram a tratá-lo por Fidalgo Baldo ou Dom Baldo. O Botelho não acreditava que estes títulos fossem oficiais. Terá sido ele que os pôs a si próprio.

Quanto à origem do dinheiro havia várias opiniões.

Algumas pessoas diziam que o Estanqueiro teria enriquecido com o negócio do minério. Comprá-lo-ia na Fonte Santa de Mogadouro ou na Quinta das Pereiras e vendê-lo-ia aos castelhanos perto da fronteira de Freixo de Espada à Cinta. Tudo em segredo. Isto era a voz do povo, que umas vezes acerta e outras erra. Só é seguro que ele tinha uma mina de ferro na ladeira da Odreira que herdou de seu pai, a qual vinha do tempo dos romanos. Mas nunca a explorou, nem ninguém queria explorá-la. Tudo porque segundo os relatos antigos aquela mina era muito comprida, atravessando o monte, e as pessoas e animais que lá entravam não voltavam a ser vistos, salvo um cão que entrou num lado do monte e saiu do outro lado. A água que vinha da mina, antes das pessoas e animais lá desaparecerem, saía limpa e depois passou a ser vermelha, aumentando o medo de lá entrar.

Havia outras pessoas que diziam que não se enriqueceu com o negócio do minério, mas com uma fortuna herdada de um tio de sua mulher que era judeu, não tinha descendentes e viveu em Macedo de Cavaleiros.

O bruxo de Meirinhos – pessoa muito mentirosa – dizia que Dom Baldo encontrou um cordeiro de ouro, em tamanho natural, quando no lugar do Canamor escavava a terra para plantar uma árvore.

Terminava assim a história do Estanqueiro, e começava a história de Dom Baldo.

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo X

Subíamos o monte pela margem direita da ribeira da Vilela. O céu estava limpo, fazia muito calor e não havia vento.

À nossa frente, numa eira, formou-se um polvarinho de pó e de palha. Rapidamente tornou-se tão forte que fez ir pelos ares as telhas do telhado de um moinho entre os que ali havia e depois, enfurecido, fazia círculos à nossa volta. Ao Botelho parecia-lhe que via no redemoinho uma feiticeira em forma de cobra. Seguindo a tradição popular pegou numa peneira e numa garrafa que pediu ao moleiro. Benzeu-se e disse:” credo, 
abrenúncio”. Depois, com aquela peneira e a garrafa meteu-se no meio do redemoinho para prender a feiticeira. O redemoinho desfez-se. Então o Botelho dizia, com ar de satisfação, que tinha agarrado e metido na garrafa a feiticeira e que a tapou com a peneira para esta não fugir. Com curiosidade examinámos a garrafa e a peneira e não vimos qualquer feiticeira. Talvez se tenha escapado.

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo IX

Aproximámo-nos de uma ribeira chamada Vilela, sendo nosso desejo beber da sua água limpa e fresca. Os cágados, que estavam a descansar ao sol sobre as pedras das margens da ribeira, ao darem conta da nossa presença submergiram lentamente na água, onde depois nadavam em círculos, provavelmente por influência dos astros.

Perto dali numa colina havia um colmeal com colmeias de cortiça, cercado por um muro alto de pedra de xisto, de forma circular, com remates em lousa salientes para o exterior, semelhantes aos anéis de Saturno, e uma porta pequena, tudo para proteger as colmeias da acção dos predadores, entre eles os ursos.

As abelhas saíam e regressavam às colmeias, a grande velocidade, num zumbido permanente, carregadas de néctar e de pólen. Depositado o produto nos favos da colmeia comiam, repousavam o suficiente para recuperar as forças e partiam de novo com o mesmo entusiasmo. De vez em quando faziam voos em círculo, de subida e descida acentuados, cuja finalidade só elas sabiam. Seria por puro prazer ou para adquirirem treino para contornar os ataques dos abelharucos, ou os obstáculos que surgiam diariamente. De qualquer modo era um comportamento espectacular.

A uns cem passos dali havia um moinho de água. Via o seu rodízio que girava em torno de si próprio com a força da água e lançava-a com ruído em todas as direcções. 

O moleiro, chamado Gabriel, natural de Fornos, acabava de chegar com duas cargas de trigo.

Resolvi parar um pouco.

O meu cavalo e o jumento do Botelho, esfomeados, comiam a erva fresca das margens da ribeira.

Sentei-me à sombra de um olmo perto de uma laranjeira com laranjas maduras. Chamei pelo Botelho para trazer os alforges a fim de ali comermos as provisões que tínhamos. Uma pedra servia de mesa e duas outras de bancos. Com a comida bebemos um vinho tinto produzido na região da Vilariça. Era de tão alta qualidade que depois de o beber via as serras andarem à nossa volta, a ribeira a correr em sentido contrário, o moinho inclinado quase a cair em cima do moleiro e o colmeal e a cerca no ar a girarem à volta de si próprios quase em cima de nós. Passados uns instantes já tinha dúvidas se era o colmeal que girava quase em cima de nós ou se era a lua cheia. Só o vinho não poderia gerar uma situação tão fantástica. Talvez fosse qualquer interferência da luz do altar romano ou de algum espírito da necrópole de São Cristóvão.

Deitei-me na erva e logo adormeci. Tive um sonho surpreendente.

Encontrei-me no outro mundo tal como sou, vivo, sem saber como lá cheguei.

Então estava sentado à sombra fresca de uma árvore com uma copa de folhas azuis e frutos perfumados e de boa pinta, muito parecidos com as laranjas de Mazouco. A copa da árvore fez-me recordar a abóbada da Igreja de Carviçais.

Tinha alguma fome e apetecia-me comer aqueles frutos. Porém, não toquei em nenhum, porque tive a premonição de que não era permitido a ninguém comê-los sem merecê-los. Eu merecia comê-los? Não sabia. Tinha dúvidas. Pior do que isso, a serpente maldita poderia ter-se transformado naqueles frutos.

Entretanto começou a chover. Não tinha capote. Pensei que ia molhar-me. Surpreendentemente as folhas da árvore beberam toda a chuva, sem cair uma gota sobre mim, nem sobre o solo. Ou seria uma chuva que pela sua natureza não molha, nesse aspecto muito diferente daquela que caía na terra.

A luz que surgiu era tão clara e afectuosa que eu já não necessitava de mais nada. Então, ou me esqueci da fome ou me passou. Talvez me tenha passado, porque quando estamos felizes quase não necessitamos de comer e de beber.

Tudo isto me pareceu fantástico em comparação com aquilo que se passava e ainda se passa na Terra.

À minha frente passava um rio que levava água abundante, a qual era mais pura que aquela que nasce na fonte Castalia em Monte Parnasso, onde se purificavam e creio que ainda se purificam as ninfas antes de se acercarem de Apolo para tocarem canções.

Pus-me a observar um cenário belíssimo que se encontrava naquele rio, na margem contrária àquela em que eu me encontrava.

Um homem que tinha aspecto de santo estava sentado num trono dourado, fazendo de juiz (ou era juiz de profissão). Segurava numa das suas mãos uma balança de dois pratos e na outra uma espada. À sua frente estava um livro aberto. Donde me encontrava não podia ler o que estava lá escrito. Apesar disso, acreditei que ali estivessem escritas as leis do céu ou pelo menos as de Moisés.

Pelo rio de que falei iam uns barcos à vela carregados de gente em direcção àquele trono, devagar, porque o vento era pouco. Os barcos eram parecidos com aqueles que navegavam no rio Douro no lugar da Congida.

As pessoas acercavam-se do trono. Esperavam que o juiz as chamasse, umas sentadas e outras de pé, porque as cadeiras não eram suficientes para todas. Algumas delas tinham os rostos tranquilos e outras mostravam-se apavoradas. Daquelas pessoas só conhecia uma, o Horácio de Mazouco.

Acordei bruscamente com os gritos de um homem e o ladrar de um cão que vinham dos lados do moinho. Era o moleiro que se queixava do meu cavalo e do jumento do Botelho, porque lhe tinham comido umas verduras na sua horta e duas quartas de cereal que se encontravam em frente do moinho. Com um pau e a ajuda de um cão afugentava os nossos animais. O jumento fugia como se não tivesse reumatismo.

Disse-lhe que tínhamos o direito de aboletamento, dada a nossa profissão, coisa que ele não sabia o que era e tive que lhe explicar. Não iríamos utilizar este nosso direito. Prometi-lhe que mais tarde lhe daria três quartas de cereal para pagar os prejuízos. Além disso, faríamos de conta que não sabíamos que o seu cão não tinha licença.

Censurei o Botelho por, em vez de guardar os nossos animais e vigiar os nossos inimigos, ter adormecido. De facto, segundo as regras da nossa profissão, quando o comandante dorme o ajudante deve estar vigilante para todas a eventualidades e, no nosso caso, para a aproximação dos salteadores.


 Respondeu-me que aquele vinho era demasiado forte para beber ao almoço.

Da cumeeira da tia Baldo se fez uma senhora saboneteira

Já desde a altura da demolição que olho para o que restou de madeiras da casa da tia Baldo a tentar perceber como dar-lhes uma nova vida. Sobrou algo dos armários, e sobretudo muita madeira das coberturas. Esta madeira tinha ficado encostada ao contentor durante bastante tempo, e para alindar um pouco mais o exterior da casa (e como os homens do lixo, obviamente, não tocaram na madeira), serrei e arrecadei todas os caibros, cúmeos e tábuas que sobraram.

O recheio da casa nova, comprado quase inteiramente no IKEA, foi sempre visto por mim como algo de transitório. Ponho aqui este mobiliário barato e bonito, e ao longo dos anos vou trocando móveis e acessórios por outros com mais valor, sentimental ou estético.

De muito olhar para as madeiras sobrantes lembrei-me de cortar pedaços dos cúmeos e, aproveitando a madeira boa do seu interior, fazer peças que pudessem tornar a Casa mais atraente para os seus hóspedes.

E assim se fez esta saboneteira, primeira de muitas. A madeira ainda não está bem identificada (o vizinho disse que seria pinho, mas não me parece uma madeira muito utilizada nas cumeeiras). Depois de sacado um pedaço (com uma serra e uma enxó), o trabalho seguinte passou por lixar e escavar (com uma navalha normal e uma faca de fazer colheres, de lâmina curva). Mantive a forma original e as faces queimadas pelo fumo. Fez-se o furo para escoar a água, alteou-se a base (para que a água não empape) com batentes pequenos e, por fim, dei-lhe duas camadas de óleo mineral, (mais uma vez) comprado no IKEA. Et voilá:


(mais fotos no flickr)

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo VIII

Pouco tempo depois chegámos às imediações de uma igreja cristã, cujo santo se chamava Cristóvão, o qual protegia as pessoas em viagem, quer durante a vida, quer depois da morte. A povoação que ficava ao seu lado também tinha o mesmo nome.

Subimos as escadas de um grande rochedo, talhadas na pedra, para entrarmos naquela igreja, visitar o seu santo e pedir-lhe protecção. O santo concedia aquela protecção, não a toda a gente, mas apenas às pessoas que de facto se arrependessem das suas más acções. Não bastava dizer que estavam arrependidas. O santo averiguava a autenticidade do que diziam, porque tinha acesso directo ao seu pensamento. Certamente que nunca daria a sua protecção aos viajantes salteadores das estradas que não quisessem mudar de vida.

Encontrámos as portas da igreja fechadas, mas pudemos ver o seu interior através de umas janelas com grades de ferro, destinadas a permitir às pessoas em viagem que pudessem ver e falar com o santo a qualquer hora do dia, dado que ali passava muita gente. O santo, durante o dia, estava sempre disponível para receber as pessoas.

Na parede da igreja estava pintada a figura daquele santo, em cima de um rochedo, com uma barca de cada lado. A barca maior transportaria as pessoas vivas e a mais pequena as almas, dada a magreza das figuras humanas que estavam dentro dela e sua aparente leveza. Ao leme das barcas via-se uma figura brilhante parecida com o São Cristóvão, ou seria ele mesmo. 

Porém, a ribeira que circundava o templo nunca teve água suficiente para nela navegarem barcas, salvo em raras ocasiões de trovoadas com chuvas abundantes.

Talvez as barcas simbolizassem as viagens humanas, os caminhos e as estradas, fossem as pessoas a pé, a cavalo, de barco, através das nuvens ou de qualquer outro meio de transporte.

Detive-me a observar outra pintura no tecto da igreja, sobre o firmamento, tal como se encontra descrito no Livro do Génesis. A pintura estava tão bem feita que me pareceu por momentos que estava a ver o céu natural, salvo umas pequenas diferenças, das quais já não me recordo bem. 

No centro do firmamento encontrava-se a Terra e à sua volta as estrelas e os astros. A Terra era maior do que as estrelas e os outros astros.

Descíamos as escadas do rochedo, pela parte da frente da igreja, quando o meu ajudante caiu em cima delas, ficando ferido pelo menos nas costelas. Então queixava-se, ai, ai… e suplicava valha-me Deus. No meio deste triste episódio lembrou-se de que não tínhamos feito o pedido de protecção ao santo. Propus que o pedido se fizesse ali mesmo, pois o espírito do santo estava em todo o lado. Mas ele, pessoa entendida no assunto por ter frequentado o seminário durante alguns anos, do qual só saiu por ter que cuidar dos irmãos por morte do pai de todos eles, explicou que o pedido feito nas escadas não tinha tanto valor como aquele que era feito à janela da igreja se esta estivesse fechada ou dentro dela se estivesse aberta. A observação tinha razão de ser. De facto, atendendo à preguiça que reina no ser humano, desde o tempo de Adão e Eva, que quiseram comer o fruto da árvore que não plantaram, se os pedidos feitos nas escadas valessem o mesmo daqueles que eram feitos junto às janelas do templo, quando estivesse fechado ou no seu interior, quando estivesse aberto, então as pessoas evitariam subir as escadas. Além disso, o ser humano gosta de receber muito e de dar pouco ou nada. Seja como for, não visitar o santo estando perto dele, seria para ele uma desconsideração.

Cumprida a nossa obrigação junto do santo e depois de descer as escadas do rochedo, já nos dirigíamos ao lugar onde se encontravam os nosso animais e então, virando-me para a fachada da igreja para me despedir do santo, reparei que do lado direito dela existia um caminho junto a uma necrópole e do seu lado esquerdo um caminho junto a uma povoação com muitos habitantes. Isto surpreendeu-me. Relacionei estes caminhos com as barcas. O da povoação representaria a viagem dos vivos e o da necrópole representaria a viagem das almas.

As sepulturas escavadas na rocha alinhavam-se em forma de barca. Algumas tinham uma cobertura apropriada e outras estavam a descoberto. Talvez estas tenham sido violadas por ladrões de tesouros. De facto, naquela povoação os familiares dos defuntos depositavam nos seus túmulos comida para a viagem daqueles e alguns artefactos, se possível em ouro, para os usarem no outro mundo, caso fosse permitido ou pelo menos para se apresentarem.

Havia também sepulturas escavadas na terra, com coberturas de lajes de xisto, algumas removidas, porventura por ladrões. Em muitas coberturas estavam gravados os nomes dos defuntos. Um dos nomes tinha o meu apelido. Fiquei muito emocionado, por pensar que seria o apelido de um meu antepassado. Aliás, já alguém me havia dito que antepassados meus viveram na povoação de São Cristóvão. Isto emocionou-me profundamente. Curvei-me em frente daquele túmulo em homenagem à pessoa que ali foi enterrada. O meu ajudante fez o mesmo, talvez para agradar ao seu comandante, cargo que muito gostaria de ocupar.

Desde tempos remotos viveu ali gente e quis deixar gravado na rocha o seu modo particular de viver e transmiti-lo às gerações futuras. Sem aquelas rochas escavadas, sem as inscrições nas coberturas das sepulturas, sem os artefactos colocados nos túmulos e sem a igreja, provavelmente nem saberíamos que aquele lugar foi povoado tão remotamente.

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo VII

No dia seguinte, saímos da povoação de Carviçais antes do amanhecer. Já íamos longe quando tocou o sino da sua igreja, para a missa ou para um baptizado. O sol abriu as suas portas e então pude ver ao longe, entre as montanhas e o céu, a Quinta do Fidalgo de Martim Tirado, a qual distava dali umas cinco léguas, seguindo pelo caminho do Canamor. Tive que esperar um pouco porque o meu ajudante se atrasou. 

Entretanto pus-me a observar aquelas montanhas, parecendo-me que estavam pintadas. Eram uma coisa admirável. Porém, o Botelho explicou-me que não estavam pintadas, mas cobertas de um manto multicolor de arbustos e árvores, sobretudo rosmaninho, giesta, esteva, pinheiros, castanheiros, amendoeiras, oliveiras e cereal. 

Os pássaros, com os mais variados chilreios, saudavam a chegada do sol e os insectos zumbiam em coro por todo o lado, lançando-se sobre as flores para recolherem o seu néctar.

Tomámos o caminho do Canamor e pouco depois penetrámos num bosque de sobreiros, onde vimos algumas pessoas conhecidas do Botelho a tirar a cortiça daquelas árvores, que naquele sítio serviam para fazer colmeias e barcos para transportar sonhos.

Continuando a nossa viagem avistámos perto de nós, numa colina, as ruínas de uma vila romana. Fiquei assombrado com uma luz azul que as ligava, em arco, à copa dos sobreiros da mata que acabávamos de atravessar. A cor azul da luz misturada com a cor verde dos sobreiros criava uma cor verde-clara cujo matiz não era conhecido na natureza. Nunca tinha visto nem ouvido falar de coisa semelhante. O Botelho primeiro dizia que não via nada, talvez por estar virado de frente para o sol. Persignou-se e mudou de direcção. Então exclamou maravilhado que aquilo era um milagre ou uma coisa extraordinária do outro mundo. Louvado seja Deus! Não se ficou a saber se o Botelho passou a ver o que não via antes por ter mudado de direcção ou por se ter persignado. Talvez estivesse em pecado e ao persignar-se terá expulsado o demónio, bruxedo ou coisa parecida que o impedia de ver. Poderia estar a ver coisa diferente do que eu via por se ter persignado. 

Tinha dúvidas sobre se o arco da luz partia das ruínas romanas em direcção aos sobreiros, ou se partia destes em relação àquelas. Aproximámo-nos das ruínas e então pudemos ver que a luz partia de um altar romano, que estava no cruzamento de caminhos. Tudo indicava que a luz provinha do interior da rocha do altar. A ser assim estávamos a assistir a um milagre. Além disso, até então ninguém tinha falado naquela luz. Aproximámo-nos mais e então eram visíveis uns veios azuis na pedra. 

Poderia a luz azul ser o reflexo daqueles veios e não vir do seu interior. Não constava que até então alguém tivesse visto aquela luz. O Botelho explicou que aquele altar tinha sido desenterrado uns dias antes, e que estaria muito sujo da terra que o cobria. No dia em que ali chegámos choveu muito, a chuva terá limpado o altar e então passou a brilhar. Mudámos o altar numa direcção em que não recebia directamente os raios do sol. A luz azul continuava a sair do altar mas um pouco menos intensa. Poderia receber a luz solar indirectamente, que era muito intensa, naquele sítio. Poderia ser também o espírito de um ou vários romanos que, tendo fugido do inferno ou do purgatório, vagueavam pelo mundo. 

Nisto vimos uma mulher velha de luto a aproximar-se de nós com uma vassoura na mão. O Botelho, dado o seu carácter impetuoso e a ambição de ganhar fama, em vez de falar com a mulher, logo considerou que ela era uma bruxa perigosa, pegou na lança e foi na sua direcção com o objectivo de a agredir ou trespassar se necessário. A mulher ou bruxa, ao aperceber-se das intenções daquele, logo desatou a correr e desapareceu de forma misteriosa atrás de uns penhascos. Teria razão o Botelho ao considerá-la bruxa? Se fosse bruxa teria usado a vassoura para voar e não o fez. Talvez não o tenha podido fazer porque o Botelho usava na lança um crucifixo benzido pelo bispo de Vila Real. 

Com boas intenções admiti mais tarde como possível que a vassoura que a mulher trazia fosse de giesta que ali colheu e a levasse para varrer a sua casa. Ou talvez fosse devota do culto romano e fosse ali para comunicar com os seus antepassados. 

Entretanto um corvo pousou nos sobreiros que recebiam a luz do altar romano, o qual dizia coisas que não se percebiam bem. Fiquei com a ideia de que eram insultos dirigidos ao Botelho. Talvez fosse a mulher que anteriormente perseguiu com a lança e se tenha transformado em corvo. Via-se no rosto do Botelho que estava amedrontado com os previsíveis poderes do corvo. Ficámos sem saber o que se passou. Só os sacerdotes poderão desvendar o mistério.

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo VI

Ao final da tarde chegámos a Carviçais. Da feira que naquele dia ali se realizava já restava pouco. Os nossos animais contornaram a igreja para ao fundo desta beberem no tanque de uma nascente. Tivemos que aguardar em fila que as pessoas que estavam à nossa frente se abastecessem daquela água, num tanque reservado para elas, e se refrescassem molhando a testa com a água que elevavam nas conchas das mãos. Fiz o mesmo, e esta experiência deu bom resultado. Além de me refrescar, a água tirou-me as dores de cabeça. Aquela fonte era famosa por causa desta particularidade. As pessoas consideravam aquela água benta por passar debaixo da igreja. Além disso, para reforçar os seus poderes curativos e purificadores, também era benzida pelo padre, de sete em sete dias. Eu sabia que a água benta se deitava na cabeça das crianças para as purificar na cerimónia do baptismo, mas não sabia que também se podia beber. Também não tinha conhecimento de que ela tivesse feito mal a quem porventura a tivesse bebido por descuido ou intencionalmente. É certo que se dizia que presunção e água benta cada um podia tomar a que quisesse. Porém, aqui a palavra tomar não era entendida no sentido de a beber ou de alguém se purificar, mas pelo contrário, de alguém querer fazer crer que valia muito quando na realidade valia pouco ou quase nada.

Chamavam-lhe a Fonte Santa de Carviçais, para a distinguir de outra que existia no município de Mogadouro. Nisto sucedeu uma coisa surpreendente: depois de o jumento beber daquela água, o seu olho amarelo transformou-se em olho normal, facto que foi presenciado por bastantes pessoas. Toda a gente ficou assombrada com o que viu e com medo de que alguma coisa estranha lhes pudesse acontecer. Olhavam com pavor umas para as outras para verem se a vista de alguma delas tinha virado amarela. Entretanto o padre, que ia da sua residência para a igreja, depois de ouvir contar o sucedido, admitiu que no olho amarelo do jumento estivesse metida uma feiticeira ou o espírito desta. Terá fugido devido à água que o jumento bebeu ser benta, ou devido à sua aproximação. 

Marcámos dormida na hospedaria da praça e metemos os nossos animais na cavalariça. Ali, de modo discreto, pedimos informações sobre se havia notícia dos salteadores.

Por devoção entrámos na igreja pela porta principal, virada para poente, estando já a decorrer a missa. O padre fez uma longa homilia sobre um monge pintor e guerreiro do castelo da Cigadonha, cujo enterro se realizou naquele dia. Foi ele quem pintara o tecto da igreja onde nos encontrávamos, dando especial importância a um monte com sete patamares em círculo que significava o Purgatório. Um deles ficou inacabado. 

As pessoas subiam os patamares carregando fardos às costas, não se sabendo o que tinham dentro. À medida que subiam, os fardos diminuíam de tamanho. Chamou-me a atenção a existência de diversas árvores com frutos parecidos com as laranjas, maçãs e as uvas, nas colunas do altar. Talvez aquela fruta fosse para oferecer às pessoas como prémio do sacrifício que fizeram para chegarem ao cimo do monte e para prosseguirem a sua viagem.

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo V

Quando subíamos a encosta do Monte da Mua ou da Mula, observámos um espectáculo surpreendente: o sol atravessava aquela montanha através de uma mina, o que sucedia todos os anos no início do Verão. Era uma coisa impressionante! A luz quando entrava na mina era branca e quando saía tinha cores e matizes variadas. Ninguém sabia ao certo por que razão tal acontecia. De qualquer modo naquele dia ninguém se aproximava da mina com receio de lá ficar preso por encantamento. 

No mesmo monte havia outras minas em vários patamares. Estes começavam por um caminho na base da montanha que a circundava sete vezes até atingir o seu cume. Nos patamares movimentavam-se pessoas com sacos de minério às costas. 

A meio da tarde, quando nos aproximávamos da povoação de Vale de Ferreiros, uma chuva de relâmpagos lançava-se contra as encostas daquele monte, acompanhada de trovões. Porém, o monte ficava igual, não se percebendo para que servia aquela fúria e tanta pressa. Partiam de uma nuvem escura pousada no cimo do monte da Mua. 

Os seres humanos e os animais amedrontavam-se com o relampejar e o trovejar, especialmente quando eram tão frequentes. Um rapaz tocava o sino da igreja daquela povoação e um padre lia passagens da Bíblia. Havia a crença de que estas práticas tornavam as trovoadas mais ligeiras e breves. 

A chuva começou a cair com gotas grossas e depois em forma de granizo. Abrigámo-nos na primeira oficina de ferreiros que encontrámos. Estes tinham coroas de louro na cabeça e suspenderam o trabalho até a trovoada passar. O Botelho pediu-lhes coroas de louro para nós e para os nossos animais. Esta prática baseava-se na experiência popular, segundo a qual os raios caíam muitas vezes nas árvores de várias espécies, mas nunca atingiam os loureiros. Se os loureiros estavam imunes aos raios, seria suficiente usar alguns ramos deles na cabeça para os afastar. Os ramos assumiam a forma de coroas para se segurarem na cabeça. 

Acreditava-se que o diabo levou para o pico do monte da Mula os melhores ferreiros que havia em Vale de Ferreiros para fabricarem raios. O diabo queria castigar os seres humanos que lhe desobedeciam lançando raios contra eles. Por isso os seres humanos, querendo retaliar ao diabo, diziam: raios o partam ou raios partam o diabo. Mas dizê-lo pouco ou nada valia, porque os raios não se viravam contra ele. 

Provavelmente alguns dos homens que se movimentavam nos patamares do monte da Mula com sacos às costas transportavam minério para a oficina do diabo para aí os ferreiros fabricarem os raios. Quiçá os raios que caíam perto de nós não seriam uma maldição, mas apenas faíscas lançadas pelo bater dos poderosos martelos dos ferreiros no ferro a altas temperaturas para fabricar os raios que o diabo queria espalhar por todo o universo. Os trovões seriam o som do bater dos martelos que ecoava repetidas vezes nos montes e o que parecia ser uma nuvem escura seria o fumo das forjas.

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo IV

Continuámos a nossa viagem por um vale estreito, num espantoso silêncio, donde se avistava a povoação do Felgar a meio da encosta do nosso lado direito. Era um povoado com as casas caiadas de branco, cercado por olarias e com uma igreja no seu ponto mais alto. As ruas estavam quase desertas àquela hora. Uma mulher vestida de luto encontrava-se no adro da igreja, com as mãos pousadas em cima do lenço da cabeça, aparentemente a observar a povoação ou a meditar sobre o transcendente. Não esteve ali muito tempo. Pegou no cesto que estava no chão, com uma lebre, pô-lo à cabeça em cima de uma rodilha e juntou-se a uma caravana de cavalos que transportava cântaros de barro para vender na feira de Moncorvo.

Pouco depois parei num cruzamento à espera do Botelho para lhe perguntar que direcção devíamos tomar, pois ele conhecia melhor aqueles caminhos. Antes de o ouvir, o meu cavalo impetuosamente tomou o caminho que dava para o cemitério, ao lado da igreja, o que não era do meu agrado, porque durante a lua cheia, ali poderiam aparecer espíritos, fantasmas, almas penadas ou pessoas perdidas que fugiram do outro mundo. Do cemitério saíam lentamente fios finos de fogo, os quais paravam no ar e depois apagavam-se. Ouvia-se ou parecia-me que se ouvia um ruído semelhante ao do arrastar de lajes, que vinha dos lados do cemitério. Provavelmente era o ruído das coberturas das sepulturas que estavam a ser abertas pelos seus ocupantes.

Seguiu-se o piar de uma coruja. Olhando em redor nada se via, nem se sabia donde vinha aquela música melancólica que nos causava arrepios de medo. O piar da coruja pronunciava mau augúrio, mas quando tal acontecia junto dos cemitérios estava ligado ao anúncio próximo da morte de alguém, ou que alguma alma penada vagueava por ali.

Enquanto isto sucedia, surgiram dois vultos à nossa retaguarda, do tamanho de pessoas. Mais adiante, em campo descoberto, vimos claramente que tinham o corpo de homens e a cabeça de lobos. Havia a crença popular de que comiam carne humana.

Puseram-se um ao lado do outro, virados na nossa direcção, uivavam como lobos, escavavam com as patas da frente no chão, levantavam o pelo, abriam a boca ao máximo e mostravam os dentes afiados para com a maior fúria e velocidade se atirarem contra nós e contra os nossos animais. Criaram um ambiente de terror. O meu ajudante, profissional experiente nestas batalhas, sabia que o relampejo da prata os afugentava.

Por isso, quando se lançaram contra nós, o Botelho aproximou o crucifixo de prata (que usava na lança) do olho luminoso do jumento e a luz reflectida logo os afastou. Então procuraram atacar-nos pela retaguarda. Para os podermos atacar de frente era necessário que os nossos animais estivessem treinados para rodar rapidamente sobre si mesmos, mas não estavam. Assim, o jumento, devido ao reumatismo de que padecia e à falta de treino, ao iniciar tal manobra logo caiu ao chão com grande estrondo, acontecimento que perturbou os lobisomens e os fez recuar. Embora estivesse vivo, ali permaneceu sem procurar levantar-se nem sequer pestanejar. Na altura não se sabia, nem houve tempo para se saber, se tal comportamento se deveu a uma impossibilidade de se levantar ou se quis permanecer deitado devido à preguiça que reinava e ainda reina nestes animais, ou se quis fingir que estava morto para que o deixassem em paz, de acordo com a sua natureza pacífica. De qualquer modo não reza a história que com a colaboração destes animais se tenha ganho qualquer batalha.

Então o Botelho quis resolver o problema sozinho, tendo em conta a sua formação em infantaria. Enfrentou os lobisomens levantando a lança para os atingir de tal modo que os pudesse cortar ao meio. Porém, os lobisomens, apercebendo-se do perigo que corriam naquela situação desvantajosa para eles, não esperaram pelo pior, fugiram e pararam à distância, em cima de um rochedo. Entretanto nasceu um novo dia, e com o aparecimento do sol os lobisomens voltaram à forma humana, e o jumento, já livre de perigo, levantou-se como se nada lhe tivesse acontecido.

Estava certo o saber popular: havia homens que durante a lua cheia se transformavam em lobisomens e quando esta acabava, ao nascer do sol, regressavam à configuração humana. Se essas pessoas se transformavam em lobisomens por vontade própria ou por uma maldição, não se sabia. De qualquer modo, quando se desconfiava que determinada pessoa fosse lobisomem, os populares, amedrontados, com o pretexto de que seria possuído pelo demónio, expulsavam-no da sua povoação. Para não serem descobertos, escondiam-se durante o dia e atacavam as pessoas durante a noite.

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo III

Entre a povoação do Carvalhal e as minas com o mesmo nome, imergimos numa densa floresta de carvalhos, castanheiros, pinheiros e aveleiras, na qual entrava pouca luz do luar - por isso ia à frente o jumento para assinalar o caminho, dadas as suas excepcionais capacidades de visão nocturna. Nisto, avistámos ao longe uns vultos de pessoas a cavalo, que vinham na nossa direcção, com tochas acesas. Vestiam capas negras e usavam chapéus de abas largas da mesma cor. Parecia que traziam uma arca ou um caixão no dorso de um cavalo, preso com cordas entre dois feixes de palha. Se fosse uma arca poderiam trazer lá dentro, entre outras coisas, um tesouro ou roupas finas de linho ou de seda. Ou então viria sem nada. Se fosse um caixão poderia estar vazio ou trazer um defunto para enterrar no cemitério do Felgar. Pararam mal nos viram e depois dois cavaleiros daquele grupo aproximaram-se de nós, ficando a cerca de cem passos de distância a olhar-nos. Então um deles deu ordem de retirada e afastaram-se numa cavalgada infernal. Não ficámos a saber se eles eram monges ou os salteadores da estrada que procurávamos ou se eram pessoas comuns, pacíficas, que pensavam que os salteadores éramos nós.

Porventura, ter-se-ão assustado com a luz amarela do olho do jumento, supondo que se tratava de um lobisomem. Tal suposição é admissível. De facto, segundo a sabedoria popular, uma pessoa que se deitasse num cruzamento de caminhos onde se espojou um burro durante as noites de lua cheia podia transformar-se num ser humano com cabeça semelhante à daquele animal. Por outro lado, a postura do jumento também os pode ter assustado: ao vê-los, por uma questão de vaidade ou numa atitude de defesa arregalou os olhos, levantou o pescoço, inclinou as orelhas para a frente, pôs os dentes a descoberto, abriu a boca ao máximo e zurrava Hi-Hó… 

Apesar da dúvida, o Botelho queria investir contra eles, dada a sua valentia, a vontade de se tornar famoso, o sentido exagerado do seu dever profissional, e por ter ouvido dizer, quando andava na tropa, que quem prestasse bons serviços na nossa profissão poderia ser promovido a comandante ou a governador. Aproveitei para lhe dizer que segundo o nosso regulamento, que ele ainda não tinha acabado de ler, em caso de dúvida não se deviam atacar as pessoas. Por isso nada fizemos. De resto, perseguir homens a cavalo com um jumento com reumatismo numa pata não daria bons resultados.

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo II

Percorrida cerca de meia légua o meu cavalo parou, sem se saber porquê. Levantou a cabeça calmamente e com curiosidade observava um agrupamento de sete estrelas que formava uma figura como a de um leão. Isto durou pouco tempo, possivelmente por ter medo dele, e logo passou a observar duas estrelas brancas de maior tamanho e mais brilhantes. Parecia-me que comunicava com elas através de pequenos relinchos e espirros, com o alongar do pescoço para se aproximar mais delas, ao mesmo tempo que escavava o chão com as patas dianteiras. Recebidos os sinais que buscava logo retrocedeu e tomou outro caminho. Então acreditei que a estrela que tinha na testa lhe dava poderes misteriosos, que lhe permitiam comunicar com as estrelas e delas receber orientações que lhe indicassem o caminho a seguir para encontrarmos os salteadores que uns dias antes em Vale de Ferreiros haviam roubado um cavalo e o dinheiro que levava um fidalgo de Martim Tirado.

O nome do fidalgo não se pode saber agora, só se saberá mais adiante, onde terá mais cabimento, quando se falar da sua sorte favorável e das suas qualidades. Continuámos a nossa viagem subindo pela encosta de uma montanha chamada Reboredo, por ter muitos carvalhos. Dos rochedos brotava água abundante, a qual em pequenas quedas amortecidas por rochas arredondadas e por plantas aquáticas produzia uma música agradável, misturada com o som das campainhas das coleiras dos animais Sem darmos conta, chegámos ao seu cume e então vimos a lua atrás dele, como se estivesse ali escondida, dando a impressão de que estava à nossa beira. Cobria-a um manto de tonalidade amarela, um pouco parecido com as searas maduras ou ervas comestíveis dos animais. Teria ocorrido ao jumento do Botelho a ideia de que se desse uns passos em frente poderia comer aquele cereal. Tentou fazê-lo. Porém, o animal embora de inteligência escassa, cedo se apercebeu de que precisaria de percorrer uma grande distância para atingir tão apetecível pastagem. Por isso, com algum desgosto, desistiu e passou a comer uma erva de inferior qualidade que estava à sua frente. Nisto, estando o jumento de lado em relação a mim reparei novamente no seu olho amarelo, então de uma tonalidade parecida com a tonalidade da lua. Porquê esta quase semelhança? Tudo levava a crer que havia uma relação oculta entre o olho do jumento e a lua cheia - pelo menos existia semelhança no facto de ambos iluminarem a terra durante a noite.

Conto de António Júlio Lopes. Publicaremos os próximos capítulos ao longo das próximas semanas.

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo I

De madrugada, antes do amanhecer, saí de Torre de Moncorvo e deixei o meu cavalo seguir o caminho assinalado pelas estrelas. Era um animal raro, de origem oriental, com uma estrela branca na testa. Gostava de viajar de noite, durante o dia, com bom tempo, à chuva e ao vento.

Li alguns livros antigos de astrólogos persas, ou terei sonhado que os li, os quais acreditavam que os cavalos com aquela estrela possuíam poderes ocultos que lhes permitiam comunicar com as estrelas e através delas  
saber qual o caminho mais favorável para os fins de cada viagem.

Estes cavalos extinguiram-se na Pérsia há mais de dois mil anos. Os sacerdotes, por inveja, não gostavam do poder misterioso destes animais. Por isso, reunidos em conselho, amaldiçoaram-nos e perseguiram-nos. Não demorou muito tempo para que começassem a desaparecer. Antes disso alguns deles refugiaram-se no Ocidente, onde se mantém a espécie.

Atrás de mim ia o meu ajudante, chamado Botelho, com um jumento valente, mas um pouco enfermo por causa do reumatismo que lhe atacava uma pata, especialmente durante aquele tempo da lua cheia.

O jumento tinha um olho normal e outro amarelo com uma tonalidade próxima do açafrão, coisa misteriosa, cujo significado ninguém sabia explicar, pois não havia memória de ter sido vista coisa semelhante. Não se tratava de uma doença da vista que lhe diminuísse a visão. Pelo contrário, aquela vista era saudável, maior do que a outra, alongada e brilhante, a qual lhe permitia ver claramente nas noites escuras.

Naquele território, que também abrangia Martim Tirado, havia o céu mais limpo que se conhecia. De noite viam-se com nitidez os astros, as estrelas mais próximas e as mais longínquas, as maiores e as mais pequenas, as isoladas e as agrupadas, as cadentes e as chuvas de estrelas. Nas noites de lua cheia, a cor azul variável do céu, o branco das estrelas mais ou menos brilhantes e o amarelo da lua davam-lhe uma lindeza que só ali se podia encontrar.

Astrólogos de terras distantes viajavam até Moncorvo com a finalidade de subirem à sua Torre e dali observarem as estrelas, os astros e os seus movimentos regulares e fazerem estudos e medições. Nas pedras do castelo deixaram escritas algumas observações realizadas e gravuras das mesmas.

Também os adivinhos daquele sítio e outros que vinham de longe subiam à Torre para observarem o voo dos corvos que ali habitavam, para ouvirem o seu canto e depois predizerem o futuro sobre assuntos importantes.

Conto de António Júlio Lopes. Publicaremos os próximos capítulos ao longo das próximas semanas.