Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo XIX

Muitos anos depois faleceram, o Fidalgo e sua mulher. O palácio ficou desabitado e começou a degradar-se. Os filhos do fidalgo não queriam viver ali. Não se sabe por que razão.

Algumas pessoas, inimigas daquela família, diziam que os herdeiros do Fidalgo não queriam habitar aquele palácio, porque estava encantado e tinham medo dos fantasmas.

Então o mestre-de-obras Nuno Gomes Lopes, neto de Aníbal Lopes, que foi vizinho e amigo de Dom Baldo, comprou o palácio e mandou restaurá-lo, com um seu projecto e sob a sua direcção, depois de conhecer e respeitar toda a história daquela família, do mouro (que não se sabe com exactidão se era uma pessoa de carne e osso ou um fantasma), do seu castelo, das lendas das mouras encantadas, da mourama e da mouraria, do que diziam os bruxos (dos que falavam verdade e dos mentirosos) e da influência dos astros e das estrelas sobre o modo de viver das pessoas daquele povo. Para executar a obra contratou uns famosos pedreiros de Freixo de Espada à Cinta, conhecidos por Pintados.

O palácio está restaurado, com excepção da torre, e se antes estava encantado, agora mais encantado está. Quando a torre estiver concluída o Nuno poderá usar os títulos de Dom ou de Fidalgo ou os dois.

Quem olhar para este palácio ficará encantado para sempre.


 António Júlio Lopes (Natural de Martim Tirado)

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo XVIII

A noite ia adiantada. Traçámos os planos de busca dos salteadores de acordo com as informações recolhidas, os presságios da lua cheia, e os poderes misteriosos do meu cavalo. Seguiríamos pelo caminho da Floresta do Palão. Porém, para evitar que as pessoas da povoação soubessem para onde íamos, tomámos inicialmente o caminho de regresso a Moncorvo. Só quando íamos longe e já ninguém nos podia ver virámos na direcção da Floresta do Palão.

Seguimos por uns atalhos pelo meio dos soutos. Ouvíamos o repetido piar das corujas, musica agoirenta que nos causava arrepios de medo. Para prevenir a surpresa de qualquer confronto desembainhei a espada e o Botelho por sua iniciativa empunhou a lança. A atmosfera agoirenta adensou-se. O jumento zurrou e o cavalo relinchou. Ocorreu-me a ideia de que também ficaram com medo, depois pareceu-me que comunicavam qualquer coisa com as corujas, mais tarde pensei que animais sem asas não comunicavam com os que as tinham, que comentariam entre si qualquer sinal que vinha da lua cheia e, por último, concluí que nada sabia. Mais adiante lembrei-me de ter lido num livro que na antiguidade havia cavalos alados. Se havia cavalos alados também havia jumentos alados, por uma questão de igualdade. Sendo assim, os nossos animais poderiam comunicar com as corujas.

Continuámos a caminhar em alerta máximo. O Botelho ia à frente sem dizer qualquer palavra. De vez em quando fazia exercícios com a lança. Seriam para se treinar ou para libertar a sua ansiedade ou as duas coisas. Os nossos animais de vez em quando paravam repentinamente, espirravam sem estarem constipados, arrebitavam as orelhas, olhavam para os lados e recuavam. Seria um sinal de que nas redondezas havia qualquer coisa estranha e perigosa. Estávamos perto de umas grutas da floresta do Palão. Ouvimos os gritos de um homem que pedia ajuda, e dizia, além de outras coisas, que havia ali ladrões.

Ao sairmos de um pinhal vimos o homem que pedia ajuda a fugir montado num cavalo e atrás dele iam também a cavalo dois supostos bandidos. O Botelho, que ia adiantado, mal viu os salteadores investiu na sua direcção com a lança em posição de os atingir. Imprevistamente o jumento transformou-se em animal alado e passou a correr ou a voar a grande velocidade e com grande ruído.

Fiquei com receio de que o Botelho os trespassasse com a lança. Tivemos sorte porque os supostos bandidos, ao verem a sua vida em risco, deitaram-se abaixo dos cavalos e logo iniciaram a fuga. De nada lhes valeu. Cercados por nós e pela pessoa que anteriormente estava a ser perseguida, renderam-se. Traziam à cinta, cada um, um punhal de lâmina comprida, tendo sido logo desarmados e acorrentados.

Seguidamente o Botelho foi buscar os cavalos que eles traziam, um deles com alforges. Perguntámos-lhes se os cavalos eram seus. Responderam que sim. Logo o perseguido afirmou que conhecia bem o cavalo dos alforges e que pertencia ao Fidalgo Baldo. Um deles respondeu que o tinham encontrado abandonado e enquanto não o reclamassem pertencia-lhes, segundo as leis do Reino. Revistados os alforges ali encontrámos ouro que pertenceria a uma Santa e uma salva em prata onde estava escrito: “oferta do povo de Lagoaça ao seu pároco na comemoração dos seus vinte e cinco anos de sacerdócio".

Um dos salteadores era alto e tinha a roupa rota. No chão estava um chapéu roto e um tapolho. Perguntámos-lhes se aqueles objectos eram seus. Responderam que não e viam muito bem.

Entretanto nasceu o sol. Olhei para o jumento e pude verificar que não tinha asas, não havia nenhumas caídas no chão e estava calmo. Então pus-me a pensar: terei visto na realidade o jumento com asas ou terei pensado que as tinha só porque era muito rápido? Não tinha dúvidas de que vi o jumento com asas. O mesmo foi-me confirmado pelo Botelho, acrescentando que as mesmas desapareceram quando desapareceu o luar da lua cheia. Não havia conhecimento de que os jumentos se transformavam em animais alados com o luar da lua cheia. Haveria outras explicações. Naquela noite tinha dado água ao jumento da que recolhi com um cântaro na fonte da moura, para curar o seu reumatismo. É provável que tivesse virtudes mágicas para o transformar em animal alado, por si, ou com a ajuda dos poderes da lua cheia. Poderia também ter acontecido que uma ave se tenha espojado num cruzamento de caminhos e que no mesmo sítio se tenha espojado depois o jumento. Se tal aconteceu estava aberta a possibilidade de o jumento se transformar em animal alado durante o luar da lua cheia.

Estávamos prontos para partir quando um pastor de ovelhas se aproximou de nós. Começou por saudar-nos. Depois contou-nos que aquele sítio era muito respeitado, porque nas grutas que estavam à nossa frente moravam os espíritos de uns famosos artistas que há milhares de anos ali viveram.

Foram esses artistas que gravaram animais num rochedo na margem direita do rio Douro, perto da povoação de Mazouco. Algumas dessas gravuras estavam danificadas, restando intacta apenas a de um cavalo.

Havia pessoas que diziam que entre as gravuras danificadas estava um jumento alado e outras afirmavam que não é um jumento, mas um cavalo alado.

Regressámos à Quinta de Dom Baldo, a quem entregámos o seu cavalo, depois de o reconhecer. Era o cavalo que lhe tinham roubado em Vale de Ferreiros.

Comemos dos restos que ficaram do casamento e depois iniciámos o regresso a Torre de Moncorvo.

Com a valentia e grande coragem demonstrados neste caso, o Botelho poderia ver cumprido o seu grande desejo de ser comandante ou governador. 

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo XVII

Então ouviu-se o ranger do portão da cerca do palácio, e a Josefa abriu-o e fez-nos sinal para entrarmos. Um jardim, de forma rectangular, ocupava a parte central da cerca. Ao meio do jardim havia um espelho de água também rectangular, que logo se transformou em redondo. O Botelho não viu nenhuma transformação, talvez por distracção. De qualquer modo fiquei sem saber ao certo se o espelho de água, quando inicialmente o vi, era mesmo rectangular ou se o confundi com o formato do jardim, dada a forte luminosidade do sol de um céu limpo, que até feria a vista, o qual poderá ter criado ilusão de formas.

O jardim tinha rosas de várias cores e outras flores. Algumas daquelas plantas floridas, segundo constava, foram trazidas pelo mouro do Norte de Africa.

Depois choveu um pouco. As plantas guardaram uma parte daquela água para irem saciando a sua sede, e a outra parte transformaram-na em perfumes que iam espalhando no ar em sinal de agradecimento às nuvens pela prenda recebida, e para atrair os insectos.

Umas gotinhas daquela água ficaram a pairar no céu e então o sol, ao vê-las, lançou alegremente os seus raios dourados na sua direcção. Manifestaram recíproca paixão, formando um arco-íris para que todo o mundo o soubesse.

Associei emocionalmente as flores à delicadeza da noiva, à sua beleza, à primavera, à renovação e ao ciclo eterno da vida.

Circundado o jardim, estávamos à entrada de um forno ligado a uma adega. Aí duas doceiras do Felgar faziam os bolos do casamento e preparavam os assados de cordeiro. Uma vez dentro deparámos com vários presuntos pendurados do tecto, tábuas com dezenas de queijos de ovelha, umas pipas de vinho e bastantes pães de trigo cozidos.

A Josefa encaminhou-nos para a entrada do palácio. Em cima havia um brasão com os desenhos de uma torre, de abelhas a voar e um ramo de flor de amendoeira. A torre significava riqueza e poder, as abelhas trabalho e o ramo de flor de amendoeira beleza, cortesia, afectividade e nobreza.

O salão do palácio deixou-me surpreendido com o seu comprimento. Nunca tinha imaginado que houvesse uma salão assim, tendo havido também comentários idênticos do Botelho. A Josefa explicou-nos que se tratava de uma ilusão. Tudo resultava do reflexo dos espelhos colocados nas paredes.

À minha frente estava um quadro pintado a óleo cuja pintura representava Dom Baldo e a sua mulher, Dona Albertina. Ele usava traje de fidalgo: botas pretas altas, calças e camisas brancas, casaco e colete azuis, esporas de ouro tipo orientais e plumas no chapéu. Do seu lado direito, numa mesa decorativa, estava uma jarra de flores de amendoeira com abelhas a esvoaçar, semelhante ao brasão da família. Do seu lado esquerdo estava a Dona Albertina, com traje elegante e de qualidade correspondente ao de mulher de fidalgo.

Depois passámos para a salão do tesouro. Nas paredes havia tapetes decorados com cenas de caça e colecções de espadas e punhais. As espadas eram muito curvas na extremidade. Estas e os punhais tinham os punhos e as bainhas decorados com pedras preciosas embutidas de várias cores, sobretudo o azul marinho. Apesar de usar espada na minha profissão fiquei impressionado com o poder cortante daquelas que vi na parede. Em algumas vitrinas estavam elmos, esporas e estribos de ouro.

A Josefa pediu-nos para tocar naqueles objectos. Não fomos capazes de o fazer. Era-nos impossível mexer os pés e as mãos. Então explicou-nos que aquele tesouro tinha sido encontrado enterrado, dentro de arcas de pele de camelo, na torre do mouro. Para o retirar foi preciso chamar um mouro ou bruxo da Torre Dona Chama, que quebrou o encanto e voltou a encantá-lo naquela sala. Acrescentou que nas paredes do palácio de Dom Baldo residia uma moura e quando as pessoas se aproximam para roubar o tesouro, ela encantava-as deixando-as imobilizadas. Isso já tinha acontecido umas semanas antes com a quadrilha da Serra de Mós. Deu-nos pormenores sobre as características do seu chefe. Era alto e magro, usava calças e camisa rotas, um chapéu de aba larga com alguns buracos e um tapolho na vista direita, fazendo supor que aquela vista estava furada. O tapolho não só tapava o olho direito mas também metade da cara daquele lado. Havia quem afirmasse que ele não tinha qualquer defeito na vista e na cara e que usava o tapolho como disfarce. Era por isso que lhe chamavam o Tapolho de Mós.

A Josefa queria mostrar-nos as restantes divisões do palácio, a torre e os seus segredos. Tal não foi possível. Mal acabávamos a visita ao salão do tesouro ouviam-se pessoas a falar na cerca do palácio. Fomos ver, com excepção do Botelho e da filha da Josefa, que ficaram a conversar. Era o regresso do casamento. À frente iam os noivos e atrás deles os seus pais, com excepção do pai do noivo que já tinha falecido, os seus familiares e, por último, os convidados não familiares.

O cortejo parou devido a um acontecimento misterioso. Sem que nada o fizesse prever, do lado esquerdo da comitiva, a uns cinquenta passos de distância, num campo bem limpo, surgiu uma enorme plantação de palmeiras, agitadas pelo vento e trespassada por frescos e abundantes raios de sol. No meio desta havia uma estrada, em linha recta, em direcção à entrada de uma casa senhorial com apenas um piso e um pátio largo a toda a volta, sustentado por colunas. A casa estava caiada de branco, com excepção das extremidades das colunas e o rodapé que estavam caiados de azul.

Ao meio da casa havia uma entrada larga com as portas abertas e com sete velas acesas de cada lado.

Começou a ouvir-se a música de um pífaro mágico. Não se sabia se vinha do palmeiral ou do interior da casa. Então surgiu uma mulher alta e magra vinda do interior da casa em direcção à sua entrada. Usava um vestido branco que lhe chegava aos pés, um chapéu redondo sem abas da mesma cor em forma de cone e sandálias de pele fina. Demonstrava uma delicadeza surpreendente: caminhava devagar e parava depois de cada passo que dava, para logo prosseguir suavemente. Chegada ao terraço da casa parou por mais tempo. Depois curvou-se para a frente, cruzou os braços sobre o peito e começou a executar uma dança: girava em torno de si própria, primeiro devagar e depois com bastante velocidade, e nessa altura abriu os braços. Tive a impressão de que o espírito da mulher se uniu aos corpos celestes e girava com eles.

Dois cães, que estavam sentados à frente do pátio, deitaram-se no chão e adormeceram com a música do pífaro mágico. As aves pararam de voar e as árvores curvavam-se em homenagem ao músico que não se via e à dançarina presente.

Terminada a música e a dança, a mulher ficou a olhar para a comitiva do casamento com tantas lágrimas que podiam secar-lhe a alma em pouco tempo. Os cães aproximaram-se de nós com ar simpático, batendo com a cauda no ar.

Alguém duvidou da bondade do que se estava a passar e comentou em voz baixa que aquela mulher seria uma antiga namorada do noivo. A Igreja impedira este casamento por ela ser moura. Teria vindo ali para estragar a festa ou para lhe desejar boa sorte ao noivo. Dom Baldo que estava um pouco distante não ouviu este comentário. Porém, notava-se no seu rosto e na sua postura a desconfiança.

Pareceu ao Botelho que se tratava de um encantamento. Com grande velocidade, agora facilitada pela recente magreza, lançou-se na direcção daquele jardim, perseguindo com a sua lança os cães e a mulher até desaparecerem.

A governanta abriu as portas do salão principal e para aí se dirigiram os convidados. Muitos olhavam para a admirável decoração das paredes e dos tectos e outros para a comida. Ainda não havia ordem, nem para se sentarem, nem para comerem. Dom Baldo saudou os convidados e agradeceu-lhes a sua presença. Após ter dado sinal, o grupo musical de Mogadouro iniciou a execução de uma música, dedicada aos noivos, assim se cumprindo a tradição das casas nobres. O grupo musical era composto por quatro elementos: uma cantora, dois músicos de alaúde e um de rabeca.

Dos convidados de fora destacavam-se dois rapazes solteiros de famílias também fidalgas, um chamado Luís Comenda, que era do Canto, e outro chamado, Amílcar Pinto, que era da Portela.

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo XVI

Imergimos num silêncio quase absoluto, interrompido pelo ladrar intermitente de um cão de guarda do rebanho de ovelhas de Dom Baldo. Era um cão simpático que ladrava com bons modos e só o necessário. Pressentiria o aproximar de alguém ou de algum animal ou seria apenas para se distrair. Curioso, subiu ao cimo de um penedo para dali poder observar melhor o que se passava à sua volta.

Uma cigarra que estava pousada num pinheiro nas nossas imediações, acordada pelo ladrar do cão, quis mostrar o seu desagrado entoando um canto estridente e incomodativo para as pessoas e os animais.

Interrompeu o seu canto quando um bando de aves se aproximou para pousar na mesma árvore e, se pudesse, devorá-la. Não por qualquer ressentimento, mas somente por uma questão de sobrevivência. Insectos daquele tamanho davam uma boa refeição para uma ave grande e várias refeições se a ave fosse pequena.

Indiferentes a tudo isto, as formigas em filas intermináveis carregavam o cereal da eira para o seu celeiro.

Trazido pelo sol e pelo vento começou a ouvir-se o tropel de animais de carga e da música agradável das suas campainhas, o qual vinha dos lados da Fonte da Saúde, situada num desfiladeiro cujas profundezas dali não se viam. Apesar da distância o som ouvia-se nitidamente, devido ao eco produzido nos rochedos de ambos os lados do vale estreito. Rochedos aqueles compostos de variados tipos de rocha que se combinaram entre si de diversas formas, dando um brilho cintilante como se estivessem em movimento. Estas gigantescas rochas escarpadas apresentavam-se enrugadas, tal como as rugas da testa de uma pessoa com mais de cem anos. Seriam as marcas da sua idade ou da pressão exercida por algum gigante para lhes dar aquela forma. De qualquer modo eram acolhedoras: ali faziam o ninho as grandes aves planadoras, as aves de menor porte e ali se refugiavam as cabras selvagens, quando perseguidas pelos lobos. Os lagartos de diversas cores e tamanhos aí habitavam nas suas tocas, e passeavam-se ao sol para se aquecerem e caçar insectos, os quais se confundiam com a cor variada da rocha e do seu musgo. 

Ouvia-se também o falar de duas pessoas, um rapaz e uma rapariga, vindo do mesmo lugar, juntamente com o murmúrio da água da fonte.

Nisto, o Aníbal e a Alzira, que eram vizinhos de Dom Baldo, saíram apressados de casa e vieram ao nosso encontro bem atentos ao que de novo se passava. À frente chegou o Aníbal com duas crianças pela mão, o Armando e o António Júlio, e atrás vinha a Alzira com uma menina ao colo chamada Maria da Graça. Não demoraram a surgir na Portela duas pessoas a cavalo, um rapaz e uma rapariga, os quais vinham na nossa direcção. O rapaz usava polainas pretas, calças e camisa brancas, um colete azul e uma espada à cinta.

À Alzira parecia-lhe que eram o seu filho e a mulher deste, os quais viviam em Freixo de Espada à Cinta. Esperámos que se aproximassem. Tratava-se de uma caravana de cinco animais: os dois da frente transportavam o rapaz e a rapariga e os restantes malas e cestos com laranjas do pomar da Ventosa.

A Alzira e o Aníbal trataram o rapaz por Ademar, e a rapariga por Maria Eugénia. Esta trazia uma novidade: estava grávida e se a criança fosse um rapaz queria que se chamasse Arlindo. Prenderam os animais a umas pedras ao alto, à frente do palheiro do José Paulo, a uns cinco ou seis passos de nós. O Ademar ia tirando laranjas dos cestos transportados por um dos animais e descascava-as com uma pequena espada que trazia à cinta, com a marca de uma oficina de Vale de Ferreiros. Distribuiu-as pelas pessoas presentes, uma a uma, assinalando que eram muito doces e que curavam as constipações. Os contemplados comiam-nas devagar e com grande cerimónia. Depois lambiam os lábios para que nada se desperdiçasse. As cascas davam-nas aos cavalos. Impressionaram-me as boas maneiras daquelas pessoas. Provavelmente aprenderam-nas com o Fidalgo.

O Aníbal, surpreendido com a doçura e os aromas das laranjas, pediu ao filho que lhe comprasse a laranjeira que desse frutos idênticos àqueles para a plantar no seu pomar da Fonte da Saúde. Quando já não o pudesse cultivar ficaria para ele. Plantaria a laranjeira mesmo ao lado da fonte, de modo a ficarem ligadas uma à outra. A laranjeira e as laranjas beneficiariam da qualidade da água da fonte. A Fortuna, que usava como símbolo um ramo de laranjeira florido, augurava que as nuvens trariam sempre chuva. A fonte nunca se secaria, renovar-se-ia sempre e a laranjeira também. Haveria sempre um amanhecer depois de cada entardecer. As laranjas teriam a cor do sol ao entardecer e ao amanhecer.

O Ademar e a mulher negociavam em tecidos de linho, de seda e lã, tendo aprendido a profissão de mercadores quando viviam em Viana da Foz do Lima. Eram amigos do judeu que estava junto de nós. Tratavam-no por Albino. Este, que tinha uma filha para casar, logo mostrou interesse em ver a mercadoria que traziam nas arcas. Gostou das colchas de seda e de linho e depois de muito regatear o preço sinalizou a compra de algumas peças com moedas de ouro.

O Ademar deu voltas ao fundo de uma das arcas, transportada por um dos cavalos. Dali tirou uma guitarra de braço comprido, chapéu e capa pretos idênticos aos que usava o Albino. Depois de pedir licença pôs o chapéu na cabeça e vestiu a capa.

Despertou a minha curiosidade o facto de o Ademar, não sendo judeu, usar um chapéu daquele estilo, e uma capa judaica. Provavelmente estaria convencido que um seu antepassado longínquo era judeu ou então traria aquele traje para o vender nas feiras. De qualquer maneira relacionava-se bem com o Albino e a Eugénia, e acabou por afirmar que conhecia uma filha daquele, chamada Raquel, da qual era amiga.

A pedido do judeu o Ademar tocou lindamente uma canção antiga e bastante conhecida enquanto aquele a cantava tão bem que nos causou grande emoção. Depois cantaram os dois juntamente e a Eugénia tocava um tambor e dançavam em círculo. Nesta situação, ambos com trajes idênticos e a cantarem e a dançarem juntos, afigurou-se-me que se pareciam um com o outro, ou seria imaginação minha.

O Ademar, quando ia com a sua caravana às feiras, tocava esta e outras canções por prazer e para atrair o povo, e depois procurava vender-lhe as suas mercadorias.

Da letra da canção recordo-me apenas que repetia muitas vezes a ideia de que haviam de voltar.

Não se sabia ao certo qual o significado da ideia de voltar da canção. Talvez não passasse da imaginação do poeta que a escreveu. Ou seria um poeta judeu que desejaria voltar a Israel ou interpretaria um sentimento comum dos judeus de regressar à terra dos seu antepassados.

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo XV

Entretanto, saiu da cerca do palácio um grupo de pessoas com uma noiva montada a cavalo. 

Vinham em direcção ao lugar onde nós estávamos: à frente caminhava um casal, cuja mulher era Dona Albertina e o homem era Dom Baldo. Este perguntou-me, em tom cortês, o que estava ali a fazer. Respondi-lhe que estava ver o belo palácio - ou castelo - de Sua Senhoria. Ficou muito contente e agradeceu com bons modos. Depois de pensar um pouco esclareceu que ele era Dom Baldo ou Fidalgo e que Sua Senhoria era só a sua mulher, de acordo com as regras da nobreza. Creio que as regras da nobreza ensinam que os fidalgos se podem tratar também por Senhoria e suas mulheres por donas.

Em particular perguntei-lhe sobre as características dos salteadores que o tinham ferido e roubado, para procurá-los e levá-los à Justiça. Respondeu-me que naquele momento não tinha tempo para isso e que esperássemos pelo seu regresso do casamento, convidando-nos a participar na boda. Chamou pela Josefa, sua governanta, a quem disse para nos mostrar o palácio e a torre logo que terminasse o trabalho que terminasse o trabalho que estava a fazer.

Terminada esta conversa alguém da comitiva perguntou-lhe se não queria usar a sua espada na cerimónia do casamento. No momento não tinha a certeza se ficava bem fazê-lo. Pediu que fossem buscar a espada e o livro de cerimónias dos Fidalgos. Abriu-o no capítulo terceiro e no seu artigo quinto estava escrito que a deviam usar nas cerimónias de casamento dos filhos ou das filhas. Pôs a espada à cinta do seu lado esquerdo, tal como ensinava o livro, e a comitiva seguiu sem mais incidentes.

O fidalgo Baldo era um homem alto e magro, com olhos cor de açafrão, com uma barba comprida como se fosse oriental. Levava uma camisa branca, laço, colete, casaco azul, calças brancas, polainas pretas de cano alto, um chapéu de aba larga e uma capa de cerimónias.

A sua mulher também era alta e magra com rosto de características lusitanas. Levava uma saia comprida de cor bege com barra azul larga com flores de amendoeira bordadas à mão, um lenço azul na cabeça e uma sombrinha, tudo de acordo com a condição de mulher de fidalgo.

Dom Baldo segurava a rédea do cavalo. Uma colcha de seda feita em Freixo de Espada à Cinta cobria a sela do cavalo. Na colcha estavam bordados bichos-da-seda, uma amoreira cujas folhas lhes serviam de alimento e um freixo com uma espada à cinta, símbolo daquele povo.

A noiva que ia a cavalo era a sua filha mais velha, de nome Maria. Mostrava a sua alegria no rosto redondo e claro. Levava um vestido branco, o qual lhe chegava aos pés, uma sombrinha, um ramo de rosas brancas do seu jardim, argolas grandes e um colar, tudo em ouro amarelo. Ia casar-se com um rapaz da Quinta da Estrada, que se chamava Gordete. Um pouco mais atrás vinham os irmãos da noiva, duas raparigas chamadas Clementina e Alcina e um rapaz chamado António.

Enquanto esperávamos falámos com algumas pessoas que por ali passavam, sobre a presença ou não dos salteadores naquela zona. Entre elas um peleiro, conhecido por Judeu de Lagoaça, disse-nos que durante a última noite desconhecidos assaltaram a igreja daquela povoação e a residência do padre, donde roubaram ouro e prata. Constava que se tinham refugiado nas grutas da serra do Palão. 

Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo XIV

Quando já estávamos perto do palácio de Dom Baldo, mandei o meu ajudante prender os nossos animais a um olmo e que fosse ao comércio comprar dez reis de cevada fresca para lhes dar.

Olhei novamente para o palácio quando estava a uns cinquenta passos de distância, o qual pela sua originalidade me causou espanto e admiração. Um palácio de uma torre tão nobre naquela serra! Nem acreditava que fosse real o que estava a ver. Era um palácio fantástico.

As paredes eram de pedra. As pedras eram de um xisto invulgar, todas diferentes e de grande beleza.

Pareceu-me que tinham vida e que se moviam em varias direcções, algumas mais rápidas e outras mais devagar, de acordo com a sua inclinação. Outras estavam dormindo, outras associavam-se formando barcos à vela, esta de tela fina, que transportavam a nossa imaginação em direcção às estrelas ou até aos mistérios da origem do universo.

Como era possível não chocarem umas com as outras! Talvez a Providência o quisera assim ou porque apesar de serem todas diferentes tinham o mesmo valor, ou tinham um poder desconhecido que evitava a colisão.

Quando estava mais perto tive a impressão que elas se moviam num lago de águas limpas e pouco depois não tinha dúvidas de que era mesmo água boa para beber, como aquela das fontes mais famosas. Então apareceu uma mulher a cantar, com um vestido da cor do fogo, sentada numa pedra que flutuava na água, a qual se transformou numa mulher a fiar com uma roca à cinta e uma pedra à cabeça. Pôs a pedra no chão, a qual passou a jorrar água como se fosse uma fonte. Acreditei que de acordo com lendas antigas aquela água fosse milagrosa e que pudesse curar a minha doença e a do jumento.

Aproximei-me para a beber e encher uma cântara de barro. Surpreendentemente, ao tocar nas pedras a figura e o cenário desapareceram. Então lembrei-me do que havia lido no livro sagrado, o Alcorão, que é mais ou menos assim: ninguém deve tocar numa mulher muçulmana, a não ser o seu marido. Afastei-me das paredes e logo continuou a cena interrompida. Sem tocar nas pedras enchi o cântaro do jorro da água da fonte.

Um pouco mais distante pareceu-me que as pedras andavam no espaço cósmico, semelhantes aos cometas e depois com o girar do sol algumas brilhavam como as estrelas e outras espalhavam uma luz suave como a da lua cheia. Talvez fossem mensageiras das estrelas e da lua.

Depois parecia-me que tinham rostos jovens, calmos e encantadores. Provavelmente eram o espelho da beleza e serenidade de uma pessoa ou fantasma que vivia dentro delas.

Elas eram a memória do fogo antigo no interior da terra, da força erosiva dos ventos e da água, dos diferentes climas da terra e dos seres vivos primitivos que com elas se fundiram.

O homem ao observá-las impressionou-se com a sua beleza misteriosa, acreditou que transportavam os segredos do princípio do universo e apaixonou-se por elas.

Para quem era aquela mensagem? Era para ele, e logo começou a trabalhá-las para construir casas, castelos e palácios, impregnando-os da sua imaginação criadora, dos seus sentimentos, dos seus sonhos, da sua cultura, dando-lhes vida e criando quadros como os dos pintores famosos. Queria que a sua obra viajasse no tempo.

A torre, também construída de pedras semelhantes, era circular, e tinha várias janelas, algumas alinhadas com o nascer do sol no início do Verão e do Inverno. Outras eram utilizadas para durante a noite observar o céu. Era importante para os camponeses saberem quando se aproximava a época das sementeiras e das colheitas.

Numa das suas pedras estavam gravadas umas palavras em árabe e um desenho de um homem que observava os astros. Não tinha nenhuma ideia sobre o significado daquelas palavras. De qualquer modo o desenho significava certamente que a torre serviu de observatório astronómico dos mouros.